SÃO JANUÁRIO, VILA BELMIRO E OUTROS CAMPOS
Escrevo este texto com uma semana de atraso. Ou melhor, com uma rodada de atraso. Digo isto porque, ao menos até onde acompanhei as notícias nesta manhã de segunda, não verifiquei a reincidência de manchetes que comunicassem invasões de campo, ameaças e agressões a torcedores, técnicos, jogadores e dirigentes esportivos como aquelas ocorridas nos jogos entre Santos e Corinthians, em 21 de junho, e Vasco e Goiás, no dia seguinte.
Mas, não é necessariamente um alívio o que sinto ao digitar o parágrafo acima –embora, claro, seja um alívio não ter o corpo atravessado por aquelas imagens lamentáveis. Antes, o que efetivamente sinto é uma espécie de apreensão, como se, a qualquer momento, uma verdadeira tragédia, ao invés de apenas o seu prenúncio, estivesse na iminência de acontecer.
Tenho quase quarenta anos e cresci frequentando a velha Fonte Nova, principal estádio de Salvador, capital baiana. Digo velha ao menos em três sentidos. Primeiro, o mais óbvio deles: para diferenciá-la da nova Fonte Nova, instalada no ano de 2013 no lugar da outra, a velha, equipamento do passado, que já não existe. Segundo, aquele dotado de uma afeição particular, construída pela convivência, como quem diz “meu velho” ou “minha velha” para se referir a um amor e a um companheirismo de vida inteira. Terceiro, e principalmente, para dizer de uma forma de sociabilidade que se perdeu – e, decerto, muito antes de a antiga Fonte Nova (já não mais a minha velha Fonte Nova) ceder face ao descaso e ao descuido e ceifar a vida de sete tricolores em 2007.
Havia, entre o final dos anos 1980 e os primeiros momentos da década seguinte, ou seja, antes de as coisas começarem a ficar um pouco estranhas, um certo espaço na arquibancada reservado para a torcida mista, onde torcedores do Bahia e do Vitória, principais rivais do estado, poderiam assistir ao jogo e torcer juntos, ainda que em direções opostas. Embora ficássemos, eu e meu pai, tricolores que somos, próximos de onde se agitavam as bandeiras da Povão, vez ou outra passávamos pela torcida mista e gostávamos que ela existisse.
Isso não significa, evidentemente, que o estádio era um oásis de paz, alegria e fraternidade. Óbvio que não: muitas violências estruturais de nossa sociedade se repetiam naquela arquibancada e merecem, hoje, não o meu saudosismo acrítico, mas o meu repúdio. Os insultos e as práticas racistas, sexistas e contra a população LGBTQIAP+ grassavam nas bocas e gestos daqueles torcedores e vocês não me verão, em salvaguarda de qualquer anacronismo, relevar o tempo: eram tão condenáveis como o são hoje, como o serão amanhã. Transformavam a velha Fonte Nova, como a qualquer outro estádio, em um território hostil a corpos dissidentes do padrão imposto pela masculinidadecisheteronormativa.
No entanto, havia um outro modo de estar com o time e com os rivais que, a despeito das insatisfações, das cobranças e da tensão que toda rivalidade levanta ao ar, não descambava para o cenário de horror que temos presenciado cada vez mais recorrentemente. Por isso, lembro de assistir pela televisão e não entender o que acontecia no confronto entre são paulinos e palmeirenses naquela final da Supercopa São Paulo de Juniores, no Pacaembu, nos idos de 1995. Também não sei precisar muito bem quando a chave virou no futebol baiano e ir à Fonte Nova em dia de clássico se tornou algo perigoso, a ponto de o Ministério Público e a Polícia Militar recomendarem torcida única em dia de clássico – torcida única onde antes existia torcida mista, enfatize-se o absurdo a que chegamos –, medida esta que, se por um lado, reduz a chance de confronto dentro do estádio, não a elimina dos arredores ou dos caminhos que levam à Ladeira da Fonte das Pedras ou ao Manoel Barradas, estações de metrô e ônibus incluídas.
Puxando um pouco pela memória, lembro de um passeio da escola quando eu era ainda criança. Estávamos no ônibus, éramos cerca de 40 ou 50 crianças e fazíamos bagunça, obviamente. Batucadas na carroceria do ônibus, músicas cantadas como se em trios elétricos e muita provocação. Alguém, tricolor ou rubro-negro, tanto faz, puxou o coro: “ôôôô / sou da [Bamor, principal torcida organizada do Bahia, Tui, principal torcida organizada do Vitória] eu sou / se der porrada eu vou / e ninguém vai me segurar / nem a PM”. Deveria ser 1995, 1996. Talvez um pouco antes ou um pouco depois. Não sei. Talvez ali a chave já tivesse virado há algum tempo e eu não tivesse percebido. Mas o fato é que éramos crianças cantando não os nossos times, não o nosso amor, mas a naturalização da violência e do ódio entre nós.
De lá para cá, o pior se intensificou a ponto do espanto diante de cenas como aquelas da 11ª rodada do Campeonato Brasileiro, ocorridas na Vila Belmiro e em São Januário, não repetir a incompreensão incrédula face ao Pacaembu de 1995 – ainda que sejam eventos diferentes em sua natureza. O espanto agora reflete tristeza e desalento. De fato, nas últimas décadas, a relação do torcedor (e aqui eu grafo no masculino por ser esta uma disposição anímica mais presente e atuante em torcedores do que em torcedoras) com o futebol – o seu clube, o seu time, os seus rivais – vem sendo cada mais contaminada por uma tônica de confronto, ao invés de um estar com.
Tal fato não pode ser explicado por quem quer alienar o futebol da política, apartando-o dos sujeitos sociais que somos, para pensá-lo em uma bolha, como se capaz de engendrar de si para si os sentidos, os valores e os modos de ser que coloca no mundo. O modo como hoje vivemos o futebol é fruto do modo como somos subjetivados pelo nosso tempo e pela estrutura social a que estamos expostos.
Por um lado, tem-se um estado de animosidade belicosa em relação ao outro, aquele que não repete em si os padrões aos quais o meu corpo se irmana. Para além de um instinto ancestral que talvez reverbere desconfianças em relação ao não pertencente ao meu grupo, é fato que, no mundo moderno/contemporâneo, o capital se beneficia largamente de uma economia baseada na guerra – basta acompanhar o movimento pendular dos Estados Unidos no que se refere à manutenção de um estado de iminência constante de guerra, quando não de guerra de fato para aquecer os corações e o mercado estadunidense. A lógica do outro como uma ameaça, como um inimigo encarnado na diferença, não apenas reafirma a pertença ao igual, intensificando o consumo sucessivo de símbolos que traduzem o nosso elo em comum, como também movimenta um ininterrupto incremento de aparato bélico capaz de competir e sobrepujar a capacidade do outro de fazer a guerra. É difícil visualizar como o comportamento entre torcidas rivais repete este mesmo funcionamento?
O parágrafo acima não explica, porém, quando a torcida se volta contra o próprio clube, ao invés de a seus rivais. Neste caso, o que movimenta a raiva e a revolta é a forma como o capital nos configura como subjetividades-para-o-consumo. Tornado mercadoria – e, tanto mais, uma mercadoria em grande parte envolvidapela paixão –, o futebol faz o torcedor replicar a lógica da sociedade de consumo: o investimento financeiro no clube – seja tornando-se sócio-torcedor ou comprando artigos e ingressos – deve ser recompensado por um prazer imediato, que não admite frustrações. Em consonância a este fato, convém lembrar que a leitura do capitalismo contemporâneo empreendida por Byung-ChulHan aponta para a compreensão de que somos hoje estruturados a partir da projeção de um desempenho hipereficaz, isto é, que não admite perdas. Tornado mercadoria, portanto obrigatoriamente sujeito a corresponder às projeções (narcísicas, talvez?) de seu torcedor, o futebol se vê refém de uma expectativa de eficácia que ele – nem nós ou nada – pode realmente cumprir. Alguma coisa se parte, então, entre clube e torcedor, de modo que, no espaço fraturado do ato de torcer, algo que é da ordem de uma intensa insatisfação – a do consumidor não atendido em seus anseios – vem à tona e explode como fúria.
O que temos visto ao longo das últimas décadas e que tem assumido novas formas e desdobramentos, aquilo o que se pôs novamente em cena na última semana, é, ao mesmo tempo, o prenúncio de uma tragédia porvir e a imagem da tragédia presente, aquela na qual vivemos dia após dia. Portanto, mais do que isolado como um problema em si, as cenas vistas na Vila Belmiro e em São Januário precisam ser pensadas como aquilo o que verdadeiramente são: sintomas do problema em que estamos metidos. Digo isto porque a punição aos clubes e torcedores, bem como a interdição ou o esvaziamento dos estádios, embora sejam atitudes justas e necessárias, não acarretam qualquer ponto de inflexão na escalada à tragédia anunciada. Adiamentos, talvez. Mas, não uma viragem; não uma mudança de rumos. Esta só virá se o problema do futebol for pensado em sua conexão íntima com aquilo o que somos como sociedade. É apenas pela reorganização de nossos modos de ser e de estar no mundo que poderemos efetivamente combater a raiz do que vimos nos campos da 11ª primeira rodada do Campeonato Brasileiro.
Junte-se a nós nessa luta contra a violência.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: reprodução da internet