PEDAGOGIA DE GANDHY
Entre as miudezas cotidianas da vida, algumas pequenas coincidências causam, no silêncio de nós, um certo impacto.
Tenho acompanhado com apreensão as notícias que chegam sobre a guerra na Ucrânia e seu possíveis desdobramentos. Como nunca acredito na razoabilidade da espécie humana – o que não significa necessariamente uma visão fatalista de mundo –, fico em alerta a propósito de qualquer menção à palavra “guerra”, a qual jamais parece sair de moda. Alerta este que logo se transforma em outros estados nervosos quando os atores envolvidos na disputa são a Rússia e os Estados Unidos, países cuja rivalidade não arrefeceu com a queda do muro de Berlim e a dissolução do bloco soviético – pelo contrário, se a tensão entre eles conheceu algum período de latência enquanto os russos se reerguiam do cenário catastrófico que acompanhava o fim do comunismo e o governo de Boris Yeltsin, a escalada da Otan em direção ao Leste não permitiu que os ânimos, de fato, conhecessem um termo. O perigo do conflito ultrapassar as fronteiras ucranianas é real, embora não seja exatamente provável. Todos sabem que uma Terceira Guerra envolvendo, em lados opostos, potências militares dotadas de amplo poderio nuclear, acarretaria o crepúsculo da civilização como nós a conhecemos – a capacidade destrutiva envolvida na contenda é inimaginável. Não sei de fato se é isso é alguma garantia de segurança, e o mais provável é que não, mas, às vezes, é necessário fingir que sim.
Ontem à noite, sábado, 26 de fevereiro, mais ou menos por volta da meia-noite, eu lia alguma notificação enviada pela Folha ao meu celular. Se não me engano, referia-se ao fato de Vladimir Putin, em resposta contundente ao envolvimento dos países ocidentais junto à Ucrânia, ter modificado o status de seu equipamento bélico nuclear, colocando-o sob alerta máximo. O que isso precisamente significa, eu, leigo em assuntos militares, desconheço, mas, a julgar pelas palavras envolvidas, coisa boa não é. No exato instante em que abria a notícia, certos acordes chegaram à minha janela vindos de uma casa distante cerca de 300 ou 400 metros. Era o carnaval particular daquela família, daqueles amigos, daqueles amantes, daquela gente desconhecida, mas, que por um ou outro minuto, trouxe alguma leveza e serenidade a este coração ciclotímico, que se arritimiza por um tudo e por um nada. Dei-me conta de que, apesar de tudo, a pandemia a guerra e mais o que fosse, era carnaval. E o que chegava, rasgando o silêncio da rua, é de imediato reconhecível por qualquer baiano que goste um pouco que seja da Folia de Momo. Canção ingênua, de impalpável idealização, mas que, por isso mesmo, conecta-se profundamente aos anseios de uma gente sofrida, que tem os dedos picados por ponta de faca, que se encontra cansada de tanta luta e que vê, como um milagre, na alegria obscenamente bela das inversões dionisíacas, uma fresta, um halo, um respiro para a vida.
Baixinho, com o celular ainda na mão, eu me vi cantando: eu queria / que essa fantasia fosse eterna / quem sabe um dia a paz / vence a guerra / e viver será só / festejar.
É certo que esse dia não chegará, sinto frustrar ao meu próprio coração. A história humana é tudo, menos pacífica ou pacifista. E nada, absolutamente nada, alenta a aposta moderna (portanto, datada e cheirando a naftalina) de que o progresso técnico e material implicaria um equivalente ético ou moral – o que temos presenciado é o justo oposto: o fortalecimento mundial da extrema-direita e sua plataforma do ódio reativa forças políticas que, se houvéssemos “evoluído” um tiquinho que fosse com os horrores da Segunda Guerra, restariam invalidadas, sem margem para qualquer retorno. No entanto, dane-se! como diz o sujeito daquela canção do Caetano, gravada primeiro pelo Roberto e depois pelo Oswaldo, “noutras palavras, sou muito romântico”.Tenho em mim qualquer coisa que quer cantar e canta junto à letra de “Baianidade nagô”, como se acreditasse no poder de bruxa da canção em furar o real, nele criando uma abertura para que um real outro vaze, ainda que gota a gota, e se instaure.
E por falar na festa de Momo, hoje seria domingo de carnaval: primeiro dia do Afoxé Filhos de Gandhy na Avenida, cobrindo-a, em toda a sua extensão, com o tapete branco da paz. Os agogôs tocariam o Ijexá e dançaríamos convidando, a cidade o estado o país o mundo a perfumar os corpos e as ruas com o doce aroma da alfazema, ao invés do cheiro nauseabundo daquelas e daqueles que foram vítimas da bala ou do míssil e se amontoam por entre os restos do que antes fora casa prédio escola paisagem de namorados.
Porque a paz cheira à alfazema, mundo. Eis a pedagogia do carnaval de Salvador, da patuscada do Gandhy. Aprende!
Ajude o nosso blog, compartilhando e curtindo as nossas postagens.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: Fábio Marconi.