PARA NÓS, O QUE FICA DESTA SELEÇÃO?
O Brasil caiu diante da Croácia nas quartas-de-final da Copa do Mundo de 2022. Após um jogo ruim, em que a seleção do leste europeu se mostrou mais competente em sua estratégia do que a brasileira, Neymar marcou um bonito gol no primeiro tempo da prorrogação e, a quatro minutos do fim da partida, num contra-ataque pelo qual os croatas esperaram mais de duas horas, Petkovic empatou. A disputa foi para os pênaltis. O Brasil converteu apenas duas entre quatro tentativas – Rodrygo e Marquinhos erraram –, a Croácia, por sua vez, acertou todos os quatro chutes. Brasil eliminado.E a festa barulhenta que, minutos antes, se dava no meu Largo Dois de Julho se fez silêncio lutuoso, pesado.
Muito embora esta talvez seja a melhor safra de jogadores desde o título de 2002, o futebol brasileiro, salvo o segundo tempo diante da Sérvia e a primeira etapa frente à Coréia do Sul, esteve aquém do que dele se esperava. A dificuldade em face do futebol praticado pela Croácia, marcado por sua característica mais defensiva, de muita disciplina e poucos riscos, evidencia a ausência de brilho de uma seleção eficiente, sim, mas com pouca disposição para encantar – aliás, a vitória da Argentina sobre a seleção croata por 3 a 0 na semifinal complica ainda mais a memória do futebol praticado pelos brasileiros nesta Copa.
Mas este não é um blog especializado em discutir futebol. Logo, o assunto deste texto é outro, embora atrelado, sim, à participação brasileira no Mundial da Fifa. Há um saldo de polêmicas relacionado à participação brasileira nesta Copa que me interessa discutir brevemente. À parte o futebol praticado e as escolhas erradas de Tite – por que Daniel Alves foi convocado? Por que Raphinha e Paquetá permaneceram em campo quando Vinícius Junior tinha muito mais potencial para desequilibrar? Por que Fred entrou no jogo? Por que Rodrygo foi o primeiro a cobrar um pênalti? Por que Neymar não o fez? Por que os jogadores derrotados foram abandonados em campo? –, há críticas direcionadas aos cabelos dos jogadores e, sobretudo, ao fato de alguns deles, na companhia de Ronaldo Fenômeno, terem ostentado um caríssimo jantar no restaurante de Salt Bae: uma peça generosa de carne folheada a ouro.
O primeiro tópico, os cabelos pintados à moda super-saiyajin – a referência vem do anime Dragon Ball, muito popular entre crianças e adolescentes do final dos anos 1990 em diante – parecem-me vazio de sentido esportivo e carregado de certo preconceito. À parte a brincadeira com a animação japonesa, o fato é que tal preocupação estética parece querer ativar uma certa conexão com parte significativa da juventude brasileira – ao menos, no âmbito restrito da imagem. Decerto não me refiro às crianças e adolescentes de classe média, mas àquelas e àqueles que nascem, crescem e vivem em meio às periferias de nosso país – territórios de origem de quase todos os jogadores convocados por Tite. Não é propriamente raro ver corpos negros periféricos que fazem, do gesto estético de manipular os cabelos, um ato político de liberdade sobre o próprio corpo, de afirmação de si e de um coletivo irmanado. Ainda que se possa desconfiar do nível de consciência política de nossos jogadores, em muitos casos próximo do negativo, não é possível negar que trazem, no corpo, inscrições do tempo em que eram outras as realidades vividas por cada um. A associação entre o insucesso do futebol e a preocupação estética dos jogadores, dado levantado por alguns comentaristas como alusão a uma pretensa falta de foco da seleção, parece-me perigosamente próxima de dizeres classemedianos que tomam da juventude periférica de cabelos organizados noutra lógica estética como “vagabunda”, que “não quer nada com trabalho”, etc. O preconceito de classe, interseccionado pelo de raça, nem se disfarça nessas colocações.
Outro é o caso, porém, da carne de ouro. E aqui eu preciso fazer uma ressalva logo de antemão: acho brega? Acho. Sem dúvida alguma, acho. De uma breguice tão sem tamanho que eu só posso rir do ridículo que são esses delírios de distinção social cultivados pelas elites econômicas – o ouro sobre a carne não é um tempero, não acresce sabor, apenas funciona como um símbolo afirmativo do poder daquele que, se quiser, pode inclusive comer ouro. O capitalismo e suas toscas fantasias. Ainda assim, quem sou eu para reprimir as breguices do outro? E não desconsidero o fato de que, talvez, para aqueles jogadores ali reunidos, o ato de devorar a carne dourada funcione como marcação de vitória sobre uma vida programada (pelo nosso racismo estrutural) para não conhecer sucesso.
No entanto, a questão passa ao largo de ser ou não brega. Fosse isso, toda discussão seria bizantina e não haveria motivo para ocupar meia página sequer. O que me incomoda nessa cena não é o fato em si, mas a necessidade de publicá-lo nas redes sociais – o que efetivamente demonstra, nesse caso, uma total e insensível desconexão com a realidade da imensa maioria do povo brasileiro, afundada no desemprego e na informalidade, iludida com falácia salvacionista do empreendedorismo, que sequer consegue hoje comprar um quilo de carne de segunda.
Este é o ponto: é fundamental entender que a popularização das redes sociais exige repensar a mediação entre quem publica um conteúdo e o mundo que o irá ler. Lembro que, no ápice das mortes por Covid-19 no Brasil, vi muita postagem de fotos celebrando a alegria de enfim tomar a vacina. E, evidentemente, toda alegria, por rara que é, deve ser comemorada. Ainda mais quando se trata de algo desta dimensão, um alívio diante do risco não pequeno de morte. Vejam: não quero reprimir a alegria de ninguém, eu também me alegrei quando vacinado. A questão é outra: não pude não pensar que, na rede de contatos daquela pessoa que posta o carnaval, há quem tenha perdido a mãe ou o filho, o marido ou a esposa, a irmã ou o tio, uma amizade ou um amor. E que seria um gesto sensível à dor do outro restringir a exibição da festa ao âmbito do privado, do particular. Como agora estamos o tempo inteiro conectados uns aos outros, parece-me indispensável que nossas postagens passem, antes de serem feitas, por um crivo crítico atento e solidário à dor do outro. Ou estamos conectados apenas na aparência enquanto que, no concreto das coisas, vivemos em profunda desconexão uns com os outros?
Nesse sentido, se por um lado a estética dos cabelos pode talvez quem sabe querer aproximar de certa maneira os jogadores brasileiros da juventude negra periférica, a veiculação midiática da ida dos jogadores ao restaurante qatari de Salt Bae, por sua vez, não deixa dúvidas quanto à tentativa de autolegitimação enquanto uma elite econômica alheia aos graves problemas sociais do Brasil.
Aparente conexão.Profunda desconexão.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: REPRODUÇÃO INSTAGRAM E YOUTUBE SALTBAE