KBLA, OU, UM TERRITÓRIO DE FORÇAS E CUIDADOS - Meu nome é Johni

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KBLA, OU, UM TERRITÓRIO DE FORÇAS E CUIDADOS

KBLA, OU, UM TERRITÓRIO DE FORÇAS E CUIDADOS

O funcionamento do racismo implica a deslegitimação e a subalternização do corpo racializado, cuja diferença em relação ao padrão estabelecido como dominante é produzida e identificada como um signo de inferioridade, feiura ou vileza. Nesse sentido, algumas partes do corpo são particularmente acionadas, enquanto metonímias, pelo processo de estigmatização. No que tange ao corpo negro, são exemplos a arquitetura do nariz e a estrutura capilar – esta última em destaque. De fato, os cabelos crespos são alvo de uma violência discursiva – que reflete, gesta e autoriza outros tipos de violência – que os associa à imagem daquilo o que é ruim. A expressão “cabelo ruim”, acho que já o disse em outro texto, não é de natureza estética – e, ainda se o fosse, seria igualmente problemática -, mas de definição ética: ruim opõe-se ao que é bom, sendo, portanto, um sentido atrelado à ideia de mal. Ora, o que se afirma ao qualificar um cabelo como “bom” ou desqualificá-lo como “ruim” remete ao suposto potencial benfazejo ou maléfico que o corpo ao qual aquele cabelo se conecta – daí a metonímia – representa para o convívio social – fato sem dúvida relacionado à permanência da discursividade instaurada pelas teorias raciais do século XIX e primeiras décadas do século XX, a qual foi a base da formação de um projeto de Brasil pós-abolição.

            É contra este cenário de exclusão e violência, que o filme Kbela, roteirizado e dirigido pela cineasta Yasmin Thayná, se rebela, denunciando-o e construindo lugares de saída do sofrimento provocado pela incidência do racismo sobre os corpos negros, principalmente os de mulheres – daí a marcação de gênero presente no título do curta-metragem, que substitui a vogal “o”, da palavra cabelo, por “a”, de maneira a pôr em evidência o seu corte pelo feminino. O título, aliás, ainda guarda outra associação feita em relação aos cabelos de mulheres negras, esta com a ideia de beleza. Afinal, a palavra “bela” pode ser facilmente identificável em kbela, caso o neologismo seja lido com o e aberto, ao invés de fechado. Este não é um simples elogio. A afirmação da beleza do corpo negro, tanto mais de seus cabelos, é um gesto político que rasura a discursividade racista, a qual se apoia na e opera pela invalidação do corpo racializado em diversos níveis.

            Em pouco mais de 20 minutos, Yasmin Thayná impacta o público. Lançado em 2015, Kbela se desgarra dos moldes tradicionais de narrativa fílmica, organizando-se não como o arco narrativo de uma personagem, o qual procura apresentar e desenvolver uma história, mas como uma série de performances que, apoiadas na potência das imagens que produzem, objetivam alcançar o público como incômodo, buscando a indignação diante do terror, e como força, no sentido de ser uma plataforma a partir da qual outras mulheres negras podem alegrar os seus corpos e instaurar uma afirmação de si mesmas.

            O cabelo dos corpos negros está no centro da cena. Em um primeiro momento, como um território de dor e dissociação, uma vez que é o lugar do conflito, criado pela engrenagem racista, em relação à imagem de si – o que dá margem à tensão e despotencialização do corpo, abrindo espaço para o seu adoecimento. Noutro plano, o curta-metragem trabalha uma política de desembranquecimento do corpo negro, que é introduzida e anunciada pela performance da atriz pretoguesa Isabél ZUAA. Inicialmente, vemos um corpo negro já tomado por uma pasta branca. Em seguida, a cena é exibida em sentido contrário ao da gravação, o que leva o público a acompanhar não o embranquecimento do corpo, mas o seu potente enegrecimento. Tal cena se desdobra em uma linda sequência de cuidado entre mulheres negras, que instaura uma afirmação de seus corpos e estéticas.

            Digo afirmação, quando ouço muitas vezes pessoas se referirem como “aceitação”. Não gosto desta última palavra porque ela traduz um sentido de passividade diante de algum infortúnio. Não penso que seja o caso, absolutamente. A palavra afirmação quadra melhor à cena: não se trata, em nenhum grau,de uma atitude passiva diante de algo indesejado, mas, de uma afirmação de existências, um desafio à ordem instituída, uma insubmissão.

            Kbela é uma experiência que afeta o público de diversos modos distintos, todos, em alguma ordem, revolucionários – na melhor acepção que esta palavra aceita. O curta-metragem é um espaço de denúncia contra o racismo e, mais do que isso, um território de cuidados que visa a potencialização dos corpos de mulheres negras (cis ou trans) para que, uma vez entendidas fora da lógica da solidão, mas em rede com outras mulheres negras, afirmem em volume máximo as suas existências, os seus corpos, os seus cabelos.

            Assista ao curta metragem, no Canal KBELA filme no Youtube:

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE! Imagem: Divulgação internet

12/12/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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