FRAGMENTOS ALEATÓRIOS AO LONGO DE 15 DIAS
Antes de este texto ser efetivamente escrito, embriões de alguns outros foram pensados, rascunhados, planejados. Não é incrível a quantidade de eventos marcantes que se dá no curto espaço de quinze dias? O fato de estarmos hiperconectados e a Folha ou algum outro jornal nos encontrar a qualquer instante e em qualquer lugar aumenta a nossa percepção de como estamos imersos em uma aceleração absurda do tempo histórico. Impossível acompanhar o ritmo das notícias, mesmo as mais banais, e os possíveis desdobramentos de seus impactos na vida social sem que isso acarrete alguma exaustão, algum cansaço. Mas, evitarei digressões dessa vez. O ponto é: ao invés de escolher uma entre as diversas sugestões de texto que o mundo me trouxe nesta última quinzena, optei por fazer um breve painel, como se todas elas se conectassem em algum ponto que eu não sei bem qual é, mas que intuo que exista. Assim, selecionei alguns aspectos de notícias e discursos que vieram ao conhecimento público nas últimas semanas para comentá-los brevemente. Talvez, a conexão entre eles se revele. Talvez não. Vejamos.
À semelhança do que fiz quando do falecimento do ator Sidney Poitier, o primeiro texto que me surgiu intentava uma homenagem ao poeta Thiago de Mello, cujo passamento se deu na sexta-feira, 14 de janeiro. Confesso ter ficado em dúvida se seria mesmo interessante fazê-lo, uma vez que a primeira postagem do ano já havia sido motivada pela morte de alguém – não almejo transformar o meu espaço aqui em um necrológio, embora pessoas queridas estejam morrendo em uma quantidade inimaginável e eu me sinta verdadeiramente abalado diante dessas perdas. A ideia-chave para esse texto seria articular uma leitura do poema “Os estatutos do homem (Ato Institucional Permanente)”, escrito pelo amazonense em abril de 1964, poucos dias após o golpe militar que nos relegou a quase 21 anos de ditadura – não fosse um pleonasmo, eu diria “a quase 21 anos de uma terrível ditadura”. Escrito à feição de um código de leis, ou melhor, assumindo a estética dos Atos Institucionais com os quais os generais retiravam os direitos e a liberdade da população civil, o poema procurava reativá-los, afirmando-os peremptoriamente. Eu focaria sobretudo no Artigo V, que diz: “Fica decretado que os homens / estão livres do jugo da mentira. / Nunca mais será preciso usar / a couraça do silêncio / nem a armadura das palavras. / O homem se sentará à mesa / com o seu olhar limpo / porque a verdade será servida / antes da sobremesa”. Thiago de Mello, claro está, escreveu este trecho como uma afronta à censura imposta, ao violento processo de silenciamentoque vigorou como pilar básico de sustentação da ditadura – não é à toa que algumas pessoas, ainda hoje, julgam o regime como um eldorado: o acesso à informação era vigiado e punido. Em 2022, esse trecho pode ser lido em outra perspectiva, para além de sua vinculação histórica, afinal, vivemos em um período em que a verdade vale muito pouco, quase nada, e quaisquer narrativas, independentemente de quão falsas e manipuladas o sejam, ocupam o debate público. Aliás, isto me leva à segunda ideia de texto que tive.
No dia seguinte ao falecimento de Thiago de Mello, 15 de janeiro, portanto, AntonioRisério, intelectual a quem eu já respeitei, sobretudo por sua produção poética e por Carnaval Ijexá, publicou o texto “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo” na Folha de São Paulo. Anteriormente, a propósito de um artigo escrito por Leandro Narloch, eu já comentei a respeito do espaço que este jornal concede a perspectivas de análise erigidas sobre bases falsas. Naquele então, defendi que, se de fato a pluralidade de ideias e posições políticas é um bem que precisa ser preservado no debate público, a simples manipulação da história (seja a de outros séculos, seja a contemporânea), como modo de preservação do lugar de privilégio da branquitude, não é uma leitura: trata-se de um erro absurdo, na melhor das hipóteses (e que não deveria ser publicizado, porque implica prejuízos já que a correção de uma verdade nunca tem o mesmo impacto da mentira disseminada) ou, no pior dos casos, de uma discursividade comprometida com a hierarquia racial brasileira, ainda que não o admita. O texto do Risério é paranoico: para ele, há um racismo anti-branco generalizado, institucionalizado e na iminência de produzir genocídios. A exceção é transformada em norma pelo articulista, produzindo um desvio de 180º em relação à realidade, na qual a população preta continua sendo morta pela bala do estado, impedida de entrar ou consumir em lojas de elite, tendo que se provar dia após dia, pois vive em um país que a percebe em condição de infra-humanidade, relegando-a aos piores índices sociais. É a população preta, Risério, que é vítima de um genocídio no Brasil. E se há uma tensão racial no ar, esta atmosfera não representa o delírio paranoico da branquitude supostamente acuada e em perigo, mas, sim, a reversão de uma estrutura social baseada nos diversos privilégios que um grupo étnico-racial tem sobre os demais – estrutura esta, aliás, herdeira direta da escravidão e das teorias raciais que a seguiram, atualizando as hierarquias ali plasmadas. (Guardemos o tema da escravidão para daqui a pouco, voltarei a ele).
Já há algum tempo, carrego comigo a vontade de escrever um texto discutindo a dificuldade que temos apresentado de ouvir o outro, ainda mais se o outro é alguém que estuda, pesquisa a sério e traz dados. O mote para este texto partiria da figura do Monark, um dos apresentadores do FlowPodcast, um canal no youtubededicado a produzir conversas com todo o tipo de gente – o que, aliás, é uma excelente proposta. O formato, que não se assemelha a uma entrevista enfadonha (o programa não quer ser um Roda viva), segue o fluxo de um bate-papo qualquer, conseguindo se conectar a todo tipo de público, independentemente da faixa-etária – não à toa, são 3,65 milhões de pessoas inscritas no canal. Eu gosto do Flow e, não raro, assisto alguns episódios completos ou, no mais das vezes, os cortes produzidos pela própria equipe do canal, o que garante uma certa fidelidade ao que foi realmente dito pela convidada ou pelo convidado. Incomoda-me, no entanto, não o Monark em si, embora tenhamos discordâncias inconciliáveis, mas a forma como ele espelha uma característica que observo disseminada em nosso país: o orgulho da ignorância. Não que ele seja um ignorante, evidentemente que não o é, mas a forma como, em face de dados e provas objetivas, ele bate o pé na discordância para afirmar uma lógica contrária ao real e desprovida de qualquer sustentação é, no mínimo, irresponsável. A primeira vez que pensei em escrever sobre este tema foi quando a Gabriela Priori esteve no programa. A segunda vez, quando Marcelo Freixo esteve lá. Agora, pela terceira vez, em função da participação de Lilia Moritz Schwarcz, que ocorreu na semana passada. Em todas as ocasiões, em face de dados levantados por diversas pesquisas que apontam para o sucesso da política de cotas, o perigo do armamento da população como política de segurança, os índices de progresso do país durante os anos do governo PT, principalmente no que se refere aos mandados de Lula e ao avanço da educação pública, a resposta “eu discordo”estava na ponta da língua. Tudo bem discordar, ninguém prega subserviência aqui. Mas, discordar baseado em quê? Quais dados sustentam a discordância em relação aos dados levantados por pesquisadores sérios, devotados ao estudo? O que nos sobra quando apostamos na ausência completa de critérios ou de rigor? Eu sei: discordar é muito mais fácil, e gera muito mais likes, do que estudar a fundo, sistematicamente. No entanto, que sociedade podemos constituir quando o estudo rigoroso é equiparado a lógicas sem qualquer amparo em dados concretos?
Aliás, voltamos a ter UTI’s com índices altos de ocupação por casos de COVID. Há quem já fale em novo colapso da rede de saúde – e não são bocas agourentas, como querem nos fazer acreditar. Há quem ainda não tenha se vacinado, há quem se recuse a vacinar. Há quem ache absurdo políticas de coibição às aglomerações festivas estarem em vigor. Na Bahia, onde o governo do estado reduziu de 5.000 para 3.000 e, posteriormente, para 1.500 o limite de pessoas em eventos (número sem qualquer justificativa técnica: ou se reduz a zero ou não haverá bloqueio na taxa de transmissão), há quem ameace parar a capital e as principais cidades do interior. Há dados concretos: 623 mil mortes; circulação de variantes com maior poder de contágio; novo aumento na média móvel de doentes e mortos, recomendações precisas da OMS, taxas de ocupação de leitos em hospitais. Mas, o que importa tudo isso, não é mesmo?Parte da população parece simplesmente dizer “eu discordo”.
Enfim, voltemos ao tópico da escravidão, que foi deixado em suspenso dois parágrafos atrás. No dia 18 desse mês, um amigo meu, professor da Universidade do Estado da Bahia, absolutamente articulado às discussão étnico-raciais e afrodiaspóricas, postou em seu status do what’sapp um vídeo com uma mulher preta explicando que os povos negros foram escravizados por serem “fortes”, não apenas, parece-me, no sentido da estrutura corporal, mas também numa lógica de resistência, e eficientes. Trata-se de Natália Deodato que, logo depois, descobri ser uma participante do Big Brother Brasil, programa que já motivou comentários meus em outras postagens aqui. É óbvio que ela, Natália, procurava construir um discurso de valorização do corpo preto, buscando uma elevação de sua autoestima histórica, de resto tão vilipendiada pela branquitude. No entanto, sem o saber, reiterava estereótipos construídos justamente pelo racismo, ou, no caso da fantasia de eficiência, pelo capitalismo neo-liberal que tem nos exaurido os corpos. É o típico caso de um discurso bem intencionado, mas que está desde a raiz capturado pela lógica do poder instituído. É um processo inconsciente – a língua é uma arena de batalhas onde, no mais das vezes, nós perdemos guerras em que nós nem sabíamos estar. Por isso mesmo é necessário o cuidado com a linguagem. O que está por trás da ideia de corpos “fortes”? Será que ela não esconde uma perigosa naturalização da violência, das condições sub-humanas a que estes mesmos corpos são submetidos? E por trás da ideia de “eficiência”? Será difícil enxergar nela uma instrumentalização do corpo, reduzido aqui aos números e às metas que ele é capaz de obter, embora quase nunca elas sejam orientadas pelo desejo que pulsa em si, ou, noutro plano, gerem dividendos em lucro próprio?
E por falar em Natália Deodato, no dia seguinte ao evento narrado no parágrafo anterior, soube que ela fora vítima da divulgação de um vídeo íntimo seu, no qual praticava sexo oral no parceiro. O vazamento de gravações com este teor tem a nítida intenção de constranger e punir a mulher, cujo exercício livre do desejo não é tolerado pela estrutura patriarcal, uma vez que denota a perda de uma fantasia de poder sobre o corpo feminino. O homem, que se descobre ridiculamente frágil quando desprovido de qualquer perspectiva de controle sobre a parceira, lugar onde o processo de subjetivação patriarcal finca raízes, vinga-se dela expondo-a a uma opinião pública moralmente conservadora e socialmente hipócrita – seja nas mesas de bar, entre amigos, em que dá detalhes do corpo e do desempenho sexual de mulheres com quem tem ficado, não raro chamando-as por termos pejorativos que conotam profissões não exercidas por elas, ou, através da publicização de vídeos como este. É fundamental que o criminoso seja identificado e exemplarmente punido. E é igualmente fundamental que se estabeleça um programa educacional que, desde a educação infantil até os cursos universitários, promova uma discussão séria em torno das relações de gênero, questionando inclusive os parâmetros constitutivos da performance masculina responsáveis por identificar socialmente o homem a partir de uma fantasia de poder.
Por último, ontem, quinta-feira, 20 de janeiro de 2022, recebi, pela voz de minha companheira, a notícia do falecimento de Elza Soares, aos 91 anos. Como eu disse no início desse texto, não quero transformar o meu espaço em um necrológio.Mas, há certas mortes que eu não posso deixar de comentar. É óbvio que toda e qualquer morte é digna de sentimento, de tristeza. Mas, algumas têm alcance nacional, ultrapassando o âmbito restrito da família ou o círculo mais íntimo de amigos. Não sei, mas, ao terminar este texto, eu tenho a sensação de que Elza Soares é a resposta. Não a resposta para o que conecta todos estes pontos, irremediavelmente dispersos, talvez. Mas, sim, sem dúvida, a resposta para sair do poço sem fundo em que nos lançam as questões levantadas em cada um dos parágrafos desse texto e tantas outras mais, que não couberam nesses últimos quinze dias. Não direi que Elza Soares foi uma mulher forte – por discordância em relação ao tempo verbal; por não me irmanar a uma categorização dicotômica entre supostas pessoas fortes e supostas pessoas fracas. Direi: Elza Soares é força preta feminina. E é justamente por isso que ela é revolução. Sim, Elza Soares é a resposta:
minha voz
uso pra dizer o que se cala
ser feliz no vão
no triz
é força que me embala
(O que se cala. Composição de Douglas Germano. Gravada por Elza Soares em Deus é mulher, de 2018)
Curta, compartilhe e comente nossas postagens.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: reprodução da internet