ELOGIO AO ACASO - Meu nome é Johni

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ELOGIO AO ACASO

ELOGIO AO ACASO

O estudo sistemático é uma ferramenta poderosa a nosso favor. Mas, aquilo o que vem por acaso, se fazendo presente sem anúncio ou alarde, chegando de imprevisto supetão, é igualmente uma maravilha.

            Eu que, mesmo em meio a tantos livros, nunca procurei ler nada sobre os povos ciganos – veja: não é que eu rejeitasse a ideia; ela apenas não se colocava em mim e para mim – tive recentemente o privilégio de revisar uma tese de doutorado acerca de um acampamento Calon no Brasil.

            Privilégio porque, além dos méritos acadêmicos que o texto possui, foi também uma oportunidade aberta para que eu pudesse rever imagens arraigadas em mim, as quais tomam dos povos ciganos como um grupo homogêneo, dotado de apenas de uma estética e um modo de vida. Nunca passou pela minha cabeça o óbvio: que assim como os povos indígenas são compostos de muitas culturas e formas sociais, os ciganos, ou melhor, os romani, também o seriam. Os Calon, por exemplo, constituem apenas um grupo étnico, entre outros, dos romani. E evidentemente, não obstante as possíveis semelhanças com os Rom e Sinti, têm, em relação a estes, sobretudo diferenças – formas constitutivas do seu modo singular de existir como ciganos. 

            Não é que eu exercesse qualquer aversão à ideia de um contato com os povos ciganos. A despeito de algumas memórias de infância em que um tio meu alertava para ter cuidado com aqueles que estavam lá, do outro lado do muro, de seu sítio em Jauá, porque supostamente roubavam criancinhas, nunca se fez em mim este sentido de um perigo e de uma repulsa a priori.

            Lembro inclusive de uma vez, já muito tempo depois, quando, em sala de aula, eu explicava sobre o século XIX e as teorias raciais que procuravam rebaixar as populações não-brancas, estigmatizando-as como inferiores ou naturalmente tendenciosas ao crime. Falávamos de como esse pensamento estruturou o racismo no Brasil e, ainda hoje, alimenta imagens negativas acerca dos corpos negros. No entanto, fiz um pequeno desvio, incluindo na discussão também os povos ciganos – apenas para a gente entendesse como a formação de um imaginário às vezes precede o contato com o outro, criando um real à parte do real. E o como isso é perigoso, pois politicamente orientado para a exclusão e o extermínio. Foi neste momento que uma estudante, pessoa inclusive muito querida e militante antirracista, me interrompeu e disse algo como “ah, professor, mas os ciganos são bandidos mesmo”. O mecanismo formador de estereótipos já estava de tal modo arraigado nela que o absurdo saltou à boca sem a necessária parada de um segundo ou dois no cérebro. Porque, às vezes, basta isso: um segundo ou dois de reflexão sobre uma determinada frase para que possamos observá-la enquanto absurdo que é. “Seicentos anos de estudo / ou seis segundos de atenção”, como cantam os Engenheiros do Hawaii em “Pra entender”. Neste caso, a minha então estudante, que aprendera tão lindamente a desmontar os absurdos ditos contra ela, mulher negra lésbica, aplicava, contra o outro de si, os povos ciganos, e sem o perceber, estrutura semelhante àquela que a procurava violentar.

            No entanto, ainda considerando esta minha abertura ao desmonte de imagens pré-fabricadas e não condizentes com o concreto das coisas, nunca os procurei para um contato mais próximo, seja nas ruas por onde andei e ando aqui e ali ou na literatura, este meu mundo mais real que o real. Assim, era refém de imagens planas, homogeneizantes, estáticas, certamente influenciadas em algum nível pela novela Explode Coração, de 1995, criada por Glória Perez e dirigida por Dennis Carvalho. Como se todos os povos ciganos fossem Dara Sbano e Igor Nicolich. O pulsante da vida, sua natureza dinâmica e plural passavam ao largo de tais imagens.

            Por isso, recebi com alegria o convite para revisar aquela tese. Era a oportunidade para aprender, ressignificar, complexificar aquilo o que, em mim, nunca antes havia se colocado como um movimento natural de meus estudos, de minhas leituras. Afinal, por que estamos vivos senão para isto, aprender que o mundo se abre em uma espiral de formas e possibilidades? E que, ao fim e ao cabo, o bonito é isto, não sermos um.

            O acaso desloca o sentido reto e previsto das coisas. Que bom!

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  Brasil de Fato

24/04/2023 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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