DA ALEGRIA, DO MAR E DE OUTRAS COISAS: UM FILME NECESSÁRIO AO NOSSO TEMPO
Não é que a arte imite a vida, ou qualquer outra fórmula pronta parecida com esta e por demais presente na boca de qualquer pessoa. A arte nos faz ver a vida, nos faz sentir a vida, nos faz pensar a vida. Fazer ver-nos a vida significa, sim, mostrar-nos sua força e invadir-nos com ela, potencializando o nosso corpo. Mas, em outra perspectiva, significa também exibir-nos toda a ignomínia que há para que nos indignemos com o reinado da violência, da tristeza e da morte, enfim, com tudo o que impede a vida de acontecer; para que tracemos um desvio, uma crítica; para que instauremos uma coisa outra. Por isso ela, a arte, é tão importante.
Estabelecida a premissa acima, quero hoje falar sobre um filme pequeno, de mais ou menos 12 minutos. Livremente inspirado em um fato real ocorrido em agosto de 1998 na cidade de Salvador, Bahia, o assassinato da travesti Luana pelo simples motivo de ela ser um corpo dissidente do padrão cisgêneroheteronormativo, o curta-metragem Da alegria, do mar e de outras coisas, roteirizado e dirigido pela cineasta baiana Ceci Alves, tematiza a violência contra os corpos travestis, a sanha assassina que os objetiva eliminar, mas, por outro lado, sem igualmente esquecer deregistrar a força de afirmação de existência que tais corpos emitem.
Lançado em 2012, o filme se organiza em dois eixos temporais. O presente, que se passa no ano 2000, acompanha Nem Glamour (Rodolfo Lima), sobrevivente ao atentado que vitimou sua amiga Joy (Rodrigo Porto Cavalcante) há dois anos. O segundo eixo temporal reconstrói, via flashbacks, os últimos momentos de Joy, quando, após ser violentamente torturada por dois policiais, foi obrigada a entrar no mar sem saber nadar. Nem Glamour, que também foi vítima das mesmas agressões e, no entanto, conseguiu sobreviver, fez a denúncia dos criminosos e, por conta disso, vive sob ameaça. Para proteger a própria vida, a personagem precisa mudar de cidade, o que ela não faz sem antes organizar uma última performance artística para celebrar a sua carreira e a memória da amiga. O show, contudo, não recebe qualquer plateia – o que vem a ser uma forma de o filme trabalhar a invisibilização dos corpos travestis na sociedade brasileira, que os vê como vidas que não importam.
Da alegria, do mar e de outras coisas trabalha em umaperspectiva que entrelaça crítica à transfobia brasileira e registro da potência da vida travesti. Assim, por um lado, faz a denúncia de uma sociedade violenta em relação aos corpos dissidentes do padrão cisgêneroheteronormativo. Nesse sentido, não custa lembrar que dados levantados e divulgados pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) apontam para o fato de que o Brasil é o país que mais mata trans e travestis no mundo – estatística esta ladeada por outra, a que afirma ser este país o que mais consome pornografia travesti em todo planeta. O filme, portanto, não se conecta à realidade brasileira apenas por ser dedicado à memória de Luana, mas, sobretudo, por ativar uma discussão urgente, a qual se refere ao direito à livre existência dos corpos, independentemente de sua identidade de gênero ou de sua orientação sexual – direito este não estendido a trans e travestis no real cotidiano do Brasil, haja vista o absurdo caso, recentemente noticiado, acontecido com Lana, mulher trans que teve o corpo violado e desrespeitado pela família, sendo enterrado de bigode e com roupas identificadas como masculinas.
Os exemplos podem ser inúmeros, mas, voltemos ao filme: a vida de Nem Glamour, que se passa sob constante ameaça, sob constante exclusão e silêncio, é apresentada pelo curta com uma fotografia noturna e azulada, o que funciona de modo a acionar os sentidos de luto e tristeza. O próprio nome da personagem corrobora com esta perspectiva, uma vez que, em língua portuguesa, “nem” remonta à ideia de algo que falta, algo ausente. A ausência de glamour é, de fato, perceptível na vida da personagem fora dos palcos, a qual é marcada pela dor e pela saudade, como na cena em que ela chora ao ouvir xingamentos e juras de morte ao telefone. A alegria que o título aponta, e que se refere a Joy, que significa justamente “alegria” em inglês, havia sido brutalmente assassinada dois anos antes.
O curta-metragem, no entanto, não prende a personagem apenas no lugar da dor. Ele consegue localizar uma força imprevista em Nem Glamour, uma potência em afirmar a sua existência no mundo, apesar de tudo. Esta força se encontra na performance realizada por Nem, ainda que sem qualquer público para presenciá-la.A performance envolve a canção “mudanças”, de Sérgio Sá e Vanusa, e o corpo de Nem Glamour envolto em um brilhante vestido vermelho – cor quente, símbolo de vida –, que não é despido após a apresentação – o que mostra como a personagem, ainda que em meio a toda ameaça e perigo, não abrirá mão de afirmar o seu modo singular de existir. “Hoje eu vou mudar / Pôr na balança a coragem / Me entregar no que acredito / Pra ser o que sou sem medo”, diz a canção por meio dos lábios de Nem Glamour em um gesto forte de enfrentamento a uma ordem de silêncio que a quer assassinar.
Da alegria, do mar e de outras coisas é um filme necessário. Dados recentes da ANTRA informam que, apenas no primeiro semestre deste ano, foram mortas 48% a mais de pessoas trans e travestis em relação ao mesmo período de 2020. As estatísticas confirmam que Luana/Joy não são casos isolados, mas uma triste recorrência na história deste país, que não cansa de matar corpos dissidentes. O curta-metragem, portanto, tem o mérito de tocar na ferida e retirar do silêncio as existências para lá arremessadas, pautando o debate acerca da necessidade de uma mudança em prol de uma sociedade efetivamente democrática. Isto é, uma sociedade na qual as pessoas não corram o risco de morte por serem quem são.
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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: Cena de “Da Alegria” – Eloi Correia