CORPOS TRISTES NÃO FAZEM REVOLUÇÃO
Uma questão de nosso tempo: a classe trabalhadora encontra-se cada vez mais fragilizada, cada vez mais à mercê das arbitrariedades a que precisa se submeter – muitas nem percebidas como arbitrariedades – para “vestir a camisa da empresa” e garantir-se no emprego.
Entre quinta e sexta da última semana, tive muitas e muitos estudantes que foram à universidade trajando rosa – a imensa maioria, jovens cursando a primeira faculdade e frequentando os primeiros estágios remunerados. Evidentemente, nenhum problema com a cor rosa, que é das mais bonitas que existem. Mesmo o seu uso sendo condicionado pela campanha de marketing do filme Barbie e, portanto, pelos processos de padronização e controle movimentados pelo capital, gostei de ver aqueles corpos vestindo outras cores para além da caretice p&b com que geralmente se apresentam.Como eram estudantes do vespertino, perguntei se haviam marcado de assistir ao filme após as aulas.
“Não, professor. Foi uma ação da escola onde estagiamos. Hoje todos os funcionários foram de rosa”, disse-me uma, logo confirmada por outras pessoas, as quais estagiam/trabalham em outras instituições. Alguém inclusive comentou que, mesmo sendo fim de mês, teve de comprar a blusa que vestia pois não possuía peças nesta cor. Em seguida, entre risos e resenhas, mostraram-me fotos e vídeos disponíveis nas redes sociais das escolas e também em suas páginas pessoais – ou melhor, já não mais pessoais, uma vez que invadidas e capturadas pelas relações de trabalho.
Perguntei, então, qual era o propósito da ação; se, por exemplo, ela dava corpo ao discurso de empoderamento feminino que o filme parece mobilizar em cena – digo “parece” porque ainda não o assisti; falo acompanhando críticas e críticos em quem confio e com quem partilho posições estéticas e éticas.
“Não, professor. A ideia era que vestíssemos rosa e participássemos de fotos e vídeos para as redes das escolas”.
Comentei algo como “que triste, né?” e ouvi: “ah, foi divertido”.
De início, falei “que triste” pensando em duas razões.
- O engajamento apenas cosmético, sem qualquer pretensão a um tensionamento do patriarcado, como o filme parece ter a intenção de provocar. Algo pensado não como problematização do mundo, mas como máquina de likes e compartilhamentos digitais. Uma forma de colocar em evidência as redes sociais de cada escola, garantindo a inscrição de novos seguidores (detesto esta palavra, por sinal!), consequentemente, uma maior circulação da marca e, talvez, um aumento no número de matrículas. Afinal, parece-me ser este o critério contemporâneo para aferir competências, definir o que é bom: a capacidade de gerar engajamento nas redes. Trata-se do mundo reduzido à publicidade. E a educação não está alheia a este processo.
- Nesta redução do mundo à publicidade, não são atrizes e atores as pessoas contratadas para fazer a propaganda da empresa/escola – e não é sem intenção que anteponho o termo “empresa” ao termo “escola”. Aliás, a rigor, não há qualquer contratação. Aproveita-se a professora, o professor, quem fiscaliza os corredores, vigilantes, responsáveis pela portaria, cantina e limpeza – e seus sorrisos tangidos pela necessidade do emprego – como corpos publicitários. Utiliza-se a imagem de tais profissionais e, ainda mais, o espaço particular de suas páginas pessoais – ainda é particular?; ainda é pessoal?; ainda é o lugar do sujeito, ao invés de uma extensão do mercado?; alguma vez o foi? – sem que isso gere qualquer custo extra à empresa/escola. Não há remuneração, apenas o funcionamento versão 2023 da mesma e velha mais-valia. Aos profissionais, cabe apenas o idêntico (e mísero) contracheque de todos os meses, sem qualquer acréscimo.
A estas duas razões, somei uma terceira quando ouvi: “ah, foi divertido”. O modo como a exploração se apresenta hoje sob um disfarce descolado, que violenta apelando para o lúdico e se espraia por horas e ambientes que não são aqueles inicialmente associados ao trabalho, produz dificuldades para que trabalhadoras e trabalhadores se reconheçam como corpos vampirizados pelo capital. Nada contra retirarmos alegria de nossos trabalhos, muito pelo contrário: é ótimo quando isso acontece. Entretanto, não é alegria o que vejo, mas uma plêiade de corpos cansados, de horizontes esgotados, incrédulos de qualquer enfrentamento, com sorrisos que mal disfarçam uma vontade imensamente maior de não sorrir. Um fatalismo reinante: “é assim mesmo”.
Que triste, não é?
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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: Reprodução da Internet