A PRETEXTO DO MOMENTO, MAIS UM TEXTO SOBRE O CARNAVAL
O carnaval é, ao mesmo tempo, a nossa maior utopia e um retumbante fracasso.
Como utopia, a festa de Momo atende ao sonho de um modo de vida regido pelo signo da alegria, da festa; um tempo em que “viver será só festejar”. Ora, a lógica do sonho, quando grafada em uma semântica própria à projeçãode um outro tempo, aponta justamente para uma descontinuidade em relação ao presente. O sonho trabalha em dois cortes temporais: em direção ao futuro, tempo do que se almeja alcançar, opera afirmativamente; já no que concerne ao presente, instante histórico imperfeito, revela insatisfações e produz o tensionamentodo que deve ser modificado a fim de que o porvir se instale.
Quando o carnaval ilumina um sonho lúdico, ele deslinda, sem qualquer sombra, esse nosso oposto: uma vida que é majoritariamente tangida por tristezas. Não é que a gente passe o dia inteiro pelos cantos, cabisbaixos, ou que, de nossas bocas, saiam apenas lamúrias. No entanto, quanto de nossas vidas é gasto em espaços, trabalhos e gentes que não se alinham, sequer minimamente, ao nosso desejo mas que, ainda assim, precisam ser tolerados em nome do pão-nosso-de-cada-dia?
Por um outro lado, a dimensão de tristeza que nos atravessa diz de um tempo cada vez mais violento, em que a estrutura de opressão que nos organiza como uma sociedade capitalista-burguesa-neoliberal intensifica ao extremo os índices sociais de exclusão enquanto precariza cada vez mais as condições de trabalho daqueles que têm apenas a si mesmos, como trabalhadores, para negociar. Ou, enquanto deslegitima a condição humana de grupos inteiros – indígenas, migrantes, refugiados, LGBTQIAP+, povos racializados, mulheres –, reduzindo-os à dimensão infra-humana, coisa descartável ou comercializável. Nesse sentido, a utopia carnavalesca, inversão das regras e hierarquias que procura ser, sonha com um espaço-tempo efetivamente democrático – condição sinequa non para que a vida se afirme como uma festa verdadeira.
Entretanto, há muito tempo a folia carnavalesca foi, em seu acontecimento mais generalizado, cooptada pelo capital. Quero dizer: a ideia de uma festa popular, democrática, de todos e para todos é, hoje, muito mais uma peça de marketing do que o real das ruas. Cindido em camarotes, cordas, festas particulares, fantasias a preço de ouro e circuitos com investimentos, atrações e estruturas discrepantes, o período momesco, em sua face mais mainstream, tem sido, ao invés de um tensionanento ao real em que vivemos, sua linha de reforço. O carnaval, enquanto utopia esvaziada de seu potencial revolucionário, torna-se o nosso grande fracasso.
Mas, isso significa que deveríamos abandoná-lo enquanto utopia? Caetano que sou, também penso que “vida sem utopia / não entendo que exista”. Isso não significa que a utopia seja uma condição necessária para as operações mecânicas do corpo, como o batimento do coração ou a expansão e a contração dos pulmões, mas que, na ausência dela, força de movimento que é, estamos condenados à imobilidade, à impotência: numa palavra, à morte.
É preciso, portanto, recuperar o carnaval como uma potência disruptiva, como força capaz de contaminar os nossos corpos com o sonho de um tempo outro, que se afirme pela alegria como estrutura básica do viver diário. É preciso, ao invés de abandonar a utopia, fazê-la relampejar ali, onde o capital pretende uma escuridão invisível enquanto nos seduz com as cores, as músicas, as luzes de uma festa que tinha tudo para ser linda, mas que, ao fim e ao cabo, é apenas mais uma forma triste a partir da qual o nosso mundo se apresenta e prolonga.
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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: Primeira Fobica quando ainda não era Trio, mas Dupla Elétrica (Foto: divulgação)