DES-SER HOMEM
Uma das demandas mais urgentes de nosso tempo é a desconstrução de formas de vida que, historicamente, têm se posicionado como hegemônicas – isto é, aquelas pelas quais nós visualizamos o exercício do poder.
Apesar de muita gente – seja por desinformação, ignorância ou mau-caratismo – confundir tal agenda com um projeto de aniquilamento dos corpos em posição de poder, o que realmente se coloca não é nenhum genocídio sanguinário, nenhum projeto de extermínio ou de opressão – este, aliás, é o modus operandi do poder, não das insurreições que procuram combatê-lo.
O tensionamento da branquitude, por exemplo, não propõe nenhuma política de rebaixamento dos corpos brancos a condições sub-humanas e de subalternidade. Isto porque o cerne da disputa não passa por uma tentativa de dominar o outro, mas de reverter aquilo que nos interpela como ideologia e que, portanto, nos subjetiva sob a tutela da branquitude. É, deste modo, uma batalha que se trava pelo imaginário e, sobretudo, pelos efeitos que o imaginário acarreta sobre o real.
Da mesma forma, pode-se falar no combate à cis-heteronormatividade. O que está sob tensionamento, obviamente, não é a existência de corpos não-trans e não-lgbtqiap+, mas o sentido de normalização de que pessoas cis e hétero gozam em detrimento das outras possibilidades de ser. E, tanto mais, o como a ideia de “normal” convoca, por oposição direta, as ideias de “anormal”, “monstruoso”, “doentio”, etc., que funcionam, aí sim, como processos de subalternização de corpos não alinhados à doxacis-heteronormativa. Afinal, quem corre risco de morte em nossa sociedade, o homem cishétero ou a mulher trans, o cara que é gay, a mulher que ama outras mulheres?
Não é diferente quando se fala em desmontar a estrutura patriarcal. O poder imediatamente grita: protejam-se, homens! Vocês estão em perigo!Como se de fato estivesse em curso uma inversão nas relações hierárquicas de nossa sociedade – hipótese (ou melhor, fantasia) que qualquer estatística que procure investigar a divisão de poder hoje, no Brasil, entre o homem e a mulher logo desautoriza. No entanto, há quem acredite. E não são poucas pessoas. Para esta gente, o feminismo, força supostamente dominante na contemporaneidade, atua para rebaixar, ridicularizar e submeter o homem ao jugo feminino.
O que sustenta talalucinação, mais do que um apego ao poder, é sobretudo uma ansiedade em relação ao retumbante vazio que emerge quando se quebra a imagem pela qual o homem naturalizou um sentido para si, sendo insistentemente convocado a reconhecer-se nela e por intermédio dela. Talvez devêssemos ensinar que os feminismos (no plural, porque nada é homogêneo fora do delírio do poder) colocam em pauta, sim, como sua prioridade, a emancipação feminina em todos os níveis – do econômico ao simbólico, das relações privadas às públicas. Mas que também operam como uma possibilidade real de libertação masculina, afinal, o poder que o patriarcado empresta aos homens cobra o seu preço, e não é barato, nos próprios corpos masculinos (evidentemente, não há qualquer base de equiparação à violência mobilizada contra os corpos de mulheres, que fique claro).
Des-ser homem, portanto, não significa uma proposição de extermínio do gênero masculino, mas, sim, um chamamento à mudança dos regimes de identificação pelos quais aprendemos a ser homens. Desmontar aquilo o que hoje sustenta a ideia de ser homem e construir outras bases, outros sentidos. Abrir o corpo masculino para as múltiplas possibilidades de ser, sem que haja forma fixa à qual sejamos convocados a repetir, ainda que à revelia de nossos desejos, de nossas fragilidades, de nossas emoções, de nossas delicadezas.
Desconstruir o homem não é matá-lo. É, ao invés disso, deixá-lo descobrir outro modo de viver.
Ajude o nosso blog, compartilhando e curtindo as nossas postagens.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!