UMA QUESTÃO DE PRIORIDADES - Meu nome é Johni

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UMA QUESTÃO DE PRIORIDADES

UMA QUESTÃO DE PRIORIDADES

A Copa do Mundo do Catar apenas começou. Anteontem foi encerrada a primeira rodada e, enquanto escrevo este texto, estão jogando Tunísia e Austrália – placar do momento, 1 a 0 para a seleção da Oceania, gol de Duke. Ou seja: é ainda muito cedo para qualquer avaliação desportiva do evento, embora alguns resultados em um zero a zero chato e, na contramão deles, algumas surpresas listradas em preto-e-branco muito bem-vindas tenham já acontecido.

            No entanto, há desde já um mérito inegável neste mundial do Catar: o de escancarar a falácia de um capitalismo inclusivo e preocupado com os direitos humanos. Aquela coisa de acreditar que o combate à pobreza, a pauta antirracista, a agenda política de mulheres, o direito à vida e ao amor das comunidades LGBTQIAP+, além do direito à terra e aos modos singulares de existir dos povos indígenas são de fato suportados pelo capital. Ou, noutro plano, que os bloqueios criminosos a Cuba e a Coreia do Norte, a despeito de qualquer restrição ou discordância que eu possa ter em relação a tais regimes, são realmente motivados por algum resquício de solidariedade genuína a quem sofre.

            A verdade é que o capitalismo é inclusivo e aderente aos direito humanos apenas na medida em que consegue esvaziar tais pautas de suas agendas disruptivas do status quo, reduzindo-as a mero fetiche ou a produto negociado nos mercados – inclusive, os de likes e compartilhamento digital. O capital não tem outra lógica de funcionamento se não proteger e expandir a si mesmo, o que implica não alterar a estrutura profunda da dinâmica social uma vez que é em seus desníveis que o modus operandi capitalista se instala e se replica ao infinito.

            Na Copa do Catar, a primeira realizada em um país de maioria islâmica, as contradições deste Ocidente capitalista burguês neoliberal estão amplificadas. A entrevista de Gianni Infantino, atual presidente da FIFA, na véspera da abertura do evento, escancara não apenas a hipocrisia do progressismo burguês mas também os seus limites. O efeito de solidariedade – ou, tanto mais, de irmanação – pretendido pelo mandatário ao dizer-se “mulher”, “africano”, “gay”, “deficiente” e “trabalhador migrante” não apenas dilui as especificidades de cada uma destas agendas políticas, e das outras mil no interior de cada uma delas, em um universalismo integralizador que é mais máscara e aceno à tranquilidade da consciência burguesa.branco.hétero.masculina do que um efetivo estar compolítico junto a tais grupos. Ele também evidencia, para todos aqueles que se disponham a prestar um mínimo de atenção, a completa desconexão entre o jogo estratégico das imagens discursivas e o real. Afinal, o país-sede da Copa, ao qual a FIFA se associou e procura proteger (não por uma “irmanação” ao mundo islâmico, mas pela proteção aos investimentos feitos e à expectativa de retorno), não é exatamente reconhecido pela aderência a tais políticas. Muito pelo contrário.

            Muito mais grave (e reveladora dos limites progressistas do capital)que a entrevista de Infantino é a atitude da FIFA diante das seleções cujos capitães utilizariam a braçadeira “onelove”, símbolo adotado como forma de, à revelia do que almeja a federação máxima do esporte, implicar o futebol em questões políticas imprescindíveis ao nosso tempo – a todos os tempos.

É fato que tal braçadeira, ao propor o combate a todas as discriminações, recai na mesma homogeneização da entrevista do Infantino, proporcionando muito mais um certo alívio de consciência para o mundo ocidental mais progressista do que, propriamente, um impacto real e transformador no mundo – aquela coisa meio ouro de tolo de a gente expiar nossos mal-estares achando que, porque a braçadeira está lá e nos alinhamos à sua pauta difusa, estamos contribuindo para mudar as coisas. No entanto, no contexto de uma Copa do Mundo no Catar, país em que sexualidades desviantes da heteronormatividade são proibidas por lei e punidas com reclusão e morte – em que pese as sociedades cristãs ocidentais serem igualmente assassinas de pessoas LGBTQIAP+ –, a utilização da braçadeira “onelove” poderia, sim, ocasionar um tensionamento real. No mínimo, implicaria fazer ver aquilo o que se pretende invisível, inexistente.Talvez alcançasse produzir alguma discussão, ainda que sob o risco de, no Ocidente, ela homogeneizar o mundo islâmico, dimensionando-o sob o signo da barbárie, enquanto pouco ou nada olha para a própria barbárie ocidental.

No entanto, A FIFA não apenas proibiu o uso das braçadeiras como, mais do que isso, ameaçou punir com cartão amarelo os capitães que, ainda assim, a utilizassem. Ao invés da marcação pontual de um enfrentamento à LGBTQfobia, a FIFA optou por uma faixa de capitão anódina – no discrimination –, que recupera o caráter difuso da mensagem e a esvazia da dimensão de um protesto.

Gianni Infantino e a FIFA demonstraram maior empatia junto à Budweiser, cervejaria que é a principal patrocinadora da Copa do Mundo e que se viu em complicações face à restrição a bebidas alcóolicas no Catar, do que aos milhões de LGBTQIAP+ que têm suas vidas, seus corpos e amores violentados dia-a-dia mundo afora – Ocidente incluído.

Se, ao fim desta Copa, o saldo do futebol não for dos melhores, ao menos ela já terá conseguido, ainda que não intencionalmente, evidenciar o óbvio ululante: a prioridade do capital não é a vida. A prioridade do capital é o próprio capital.

A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

29/11/2022 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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