ESQUECER? NUNCA! PERDOAR? JAMAIS!
Tomo de empréstimo este, que é o lema do Grupo Tortura Nunca Mais, como título para este texto. Uma nação, bem o sabemos, se constrói a partir de um jogo tenso entre o lembrar e o esquecer. Ou seja, entre a produção de memória e o seu oposto. Este jogo não acontece ao léu, mas é evidentemente conectado aos interesses da classe que detém o controle dos poderes social e simbólico e que, portanto, pode disseminarsuas narrativas à semelhança de verdades históricas.
De fato, o controle da memória é um importante instrumento no que se refere à reprodução ad infinitumde uma mesma disposição hierárquica da estrutura política/social, afinal, atua como elemento naturalizante das divisões sociais estabelecidas, delas retirando a sua natureza de constructos históricos. Da mesma forma, na medida em que deliberadamente apaga ou dá um sentido negativo às insurgências porventura ocorridas, promove a eliminação de modelos de resistência nos quais outras insubmissões possam se inspirar, assim enfraquecendo (ou tentando enfraquecer) a possibilidade de novos levantes.
No entanto, a memória não é um campo pacificado. Antes, é um território em disputa. Isto significa dizer que há guerrilhas sendo travadas no campo discursivo, as quais procuram contornar a produção sistemática de esquecimento que se irmana a uma validação atemporal do poder instituído.
O título deste texto insere-se, como imperativo ético, no bojo deste conflito. Originalmente acionado pelo Grupo Tortura Nunca Mais, ele diz de uma batalha contra o esquecimento em torno da ditadura militar brasileira e sua produção sistemática de torturados e desaparecidos políticos.
O apagamento do horror inerente aos anos de chumbo inicia-se ainda em meio à ditadura, primeiro com a instituição da censura prévia e, em 1979, com a Lei da Anistia, que igualou torturados e torturadores, assassinados e assassinos. Após o término da ditadura, em 1985, perpetuou-se uma tentativa de pacificação de sua memória via esquecimento ou abrandamento de sua brutalidade, o que estende os seus efeitos até hoje – não à toa, há jovens nas ruas e nas redes convocando golpes e um novo AI-5.
Em contraposição, canções como “Os dias eram assim”, de Ivan Lins e Vitor Martins, livros como Câmera lenta, de Renato Tapajós, e As meninas, de Lygia Fagundes Telles, fotografias como Língua apunhalada, de Lygia Pape, entre outras inúmeras intervenções artísticas, colocavam-se (e colocam-se) em tensão com o esquecimento: atuam para ativar a memória do horror e da resistência. Assim é que Jorge Amado, em um romance de 1988, O sumiço da santa, escreve: “A censura, a corrupção e a violência eram as regras do governo, carece recordar pois existe quem já tenha se esquecido. Tempo de ignomínia e do medo: os cárceres repletos, a tortura e os torturadores, a mentira do milagre brasileiro, as obras faraônicas e a comilança, a impostura e o venha a nós – há quem tenha saudade, é natural”. Da mesma forma, Ana Frango Elétrico, multiartista contemporânea, canta em Torturadores: “Pesquisando / o nome e o endereço de torturadores / só pra contar / pros netos e porteiros / que têm todo / o direito de saber”.
Mas, na verdade, este não é um texto sobre a (triste) memória da ditadura militar. É de outras tristezas, embora conexas àquela, que ele convoca a jamais esquecer e perdoar.
Neste exato momento, nós estamos vivendo aquela que é, sem dúvidas, a semana mais importante da história recente do Brasil. Em poucos dias, iremos às urnas para decidir quem ocupará a presidência da república pelos próximos quatro anos. O atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, tenta (desesperadamente) reeleger-se. A despeito do que foi o seu mandato, a despeito do que ele é, o candidato encontra-se em segundo lugar nas intenções de voto e é mesmo factível a sua ida para o segundo turno das eleições – o que faz deste pleito o mais tenso e perigoso de nossa recente democracia.
Lembro de, a cinco anos atrás, quando já estava posicionada a candidatura de Bolsonaro à corrida eleitoral de 2018, argumentar, junto a quem me ouvisse, que aquela não seria uma eleição entre direita e esquerda, ou, entre conservadores e progressistas. O que estava em jogo não era uma escolha entre posições democráticas diametralmente distintas no espectro político, mas, algo muito mais radical e perigoso: era o grotesco que se anunciava, o abjeto, o mais absoluto horror.
Há quatro anos, Jair Messias Bolsonaro foi eleito. De lá para cá, não tivemos um só dia de descanso. A violência e os desmandos, a corrupção e as ameaças, os preconceitos e o desleixo pela vida são a tônica deste governo, que só pode nos envergonhar. Vivemos um dos períodos mais absurdos de nossa história – e momentos absurdos não são exatamente escassos no que se refere ao Brasil.
Nos últimos dias, a pretexto de conseguir angariar votos entre os grupos mais resistentes, a campanha bolsonarista tentou construir uma imagem mais moderada do presidente – imagem esta que vai ao chão toda vez em que ele abre a boca e ataca jornalistas, as urnas eletrônicas, a esquerda e o Supremo Tribunal Federal; toda vez que ele ameaça não reconhecer sua derrota nas urnas; toda vez que ele atiça o extremismo de seu séquito mais obediente e cego.
Em contraponto, uma importante ação de artistas do nosso país veio a público na última semana. Trata-se do “hino ao inominável”, com letra de Carlos Rennó e música de Chico Brown e Pedro Luís. Em sua versão integral, são 13 minutos e 45 segundos cantados em 202 versos que procuram lembrar do absurdo que é a figura de Jair Messias Bolsonaro – os versos remetem a posições assumidas pelo presidente, quando a não a frases ditas mesmo por ele: “‘A minha especialidade é matar / sou capitão do exército’, assim grunhiu. / E induziu o brasileiro a se armar, que ‘todo mundo, pô, tem que comprar fuzil’ / pois ‘povo armado não será escravizado’, / numa cruzada pela morte no país”.
A canção, de acordo com Carlos Rennó, tem a clara intenção de colaborar para a não reeleição de Jair Messias Bolsonaro. Para tanto, faz da memória o seu campo de luta. Lembrar para não esquecer. Lembrar para não perdoar. Lembrar para fazer diferente, traçar um outro caminho, afinal, “mas quem dirá que não é mais imaginável / erguer de novo das ruínas o país?”
Não é possível esquecer/perdoar as falas racistas, misóginas e lgbtqfóbicas.
Não é possível esquecer/perdoar o desprezo por mulheres, indígenas e quilombolas.
Não é possível esquecer/perdoar o descaso com a vida dos 686 mil brasileiros que morreram de covid – muitos dos quais parentes ou amigos nossos.
Não é possível esquecer/perdoar a sistemática violência contra jornalistas.
Não é possível esquecer/perdoar a mentira e a desfaçatez.
Não é possível esquecer/perdoar o descaso com a cultura e a arte.
Não é possível esquecer/perdoar o balcão de negócios espúrios que se fez da educação.
Não é possível esquecer/perdoar os ataques à democracia, a incitação à violência, as ameaças de golpe, as condicionantes subjetivas para aceitar sua iminente derrota.
Esta é uma semana decisiva. A mais importante de nossa democracia.Aquela em que precisamos “erguer de novo das ruínas o país”. Não nos esqueçamos disto.
E que a chegada da primavera, anunciada no último dia 22, se confirme no próximo domingo, dia 2, após a abertura das urnas.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Fonte: Youtube
Imagem: reprodução da internet