A TRANÇA, DE MANUEL RUI - Meu nome é Johni

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A TRANÇA, DE MANUEL RUI

A TRANÇA, DE MANUEL RUI

“É preciso escrever com palavras que ainda não existem”.

            Guardei comigo esta frase que ouvi em outubro de 2015, dita por um escritor angolano que, na ocasião, era-me ainda desconhecido. Tratava-se do poeta e ficcionista Manuel Rui, o qual havia sido convidado para realizar a abertura do II Simpósio Internacional de Baianidades, evento em concomitância com o II Congresso Internacional de Línguas e Literaturas Africanas e Afro-Brasileiras, organizados ambos pelo professor Gildeci de Oliveira Leite, da Universidade do Estado da Bahia.

            A frase com a qual o escritor finalizava a sua palestra me encantou, isto porque convocava – e ainda convoca – à criação, por intermédio desta centelha de deus que é a palavra poética, de novos reais. De outros possíveis. Manuel Rui parece dizer que é estéreo o esforço de erguer um outro mundo se o fazemos repetindo velhas fórmulas, as quais já foram capturadas pelo jogo dos poderes estabelecidos. A mim, que sou organicamente ligado à literatura, pouca coisa no mundo faz tanto sentido quanto isto.

            Mas este não é um texto sobre a potência da linguagem em milagrar outros possíveis. O ponto é: por conta do encantamento, adquiri, ao final da apresentação, dois livros do escritor: Quem me dera ser onda, originalmente publicado em 1982 e uma referência para as literaturas africanas, e A trança, lançado dois anos antes do evento, em 2013, portanto. O primeiro, li de imediato e adotei como material obrigatório quando ainda havia o componente de africanas na universidade em que eu trabalhava. O segundo, por alguma dessas razões que pertencem ao acaso, li apenas na última semana, quase sete anos após tê-lo comprado.

            Em 2022, o país de violências e divisões, que já se reorganizava e mostrava o rosto desde 2013, intensificou-se e fez crescer as tensões sociais que o estruturam. De fato, corremos riscos nesta eleição. E não me refiro apenas à permanência do que está aí ou à nunca vencida possibilidade de golpes antidemocráticos. Falo de mim e de você que temos as vidas em risco de serem ceifadas porque alguém, por acreditar na retórica de exterminar os vermelhos, a decide colocar em prática. Neste Brasil em que vivemos, o ódio movimenta-se em espiral: apenas cresce.

            A trança, evidentemente, não fala sobre nada disso – o Brasil sequer é cenário do romance, resumindo-se a uma simples menção em alguma página da narrativa. No entanto, não pude não pensar sobre este tempo e este espaço e sobre estas relações a que estamos estados. Acontece que, no romance, há uma paulatina dissolução do conflito latente entre ex-colonizados, ficcionalizados na figura de uma família angolana, e a representação metonímica do ex-colonizador, a europeia Maria – nascida na Alemanha, mas com ascendência africana quea vincula, pela ancestralidade, ao território de Angola.

            A trama gira em torno do movimento de retorno de Maria a Angola, o qual não é apenas um deslocamento entre regiões geográficas, mas igualmente, e sobretudo, um trânsito entre modos de vida. Maria viaja a Angola para dar ao mundo o nascimento de seu avô, o que equivale a recuperar o sentido de si por via da ancestralidade, reinserindo-se em um conjunto de relações que dinamizam o mundo de um modo não ocidental. Não à toa, Maria, cujo nome é extremamente simbólico para o Ocidente cristão-católico, é, na medida que avança em sua reterritorialização africana, renomeada: Citula.

            O que me pegou de jeito nesta narrativa foi a transitividade entre diferenças, a ideia de um deslocamento em direção ao outro que, ao invés de suprimi-lo, assume-o como uma força de ressignificação de si. Isto, que é bonito por si só, ganha ainda mais potência quando ressituado no panorama em que vivemos, quase completamente tomado por intransitividades. Não pude não pensar nos diversos fechamentos que têm sido erguidos, nos diversos muros, nas diversas cercas eletrificadas, nos diversos cacos de vidro, nos vários cães bravios sequer anunciados por plaquinhas de advertência.

            A trança é a escrita de um mundo outro, urgente, necessário. É coisa que se escreve com palavras que ainda não existem. É coisa que nós, brasileiros de 2022, precisamos assumir como uma demanda de criação. E não apenas no plano literário.

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  Reprodução da Internet

22/07/2022 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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