HÁ UMA LINHA. NÃO ESQUEÇAMOS. HÁ UMA LINHA. - Meu nome é Johni

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HÁ UMA LINHA. NÃO ESQUEÇAMOS. HÁ UMA LINHA.

HÁ UMA LINHA. NÃO ESQUEÇAMOS. HÁ UMA LINHA.

Há poucos dias, um burburinho estranho penetrou o silêncio pela fresta da janela quase fechada. Não eram os tradicionais e insuportáveis ruídos do trânsito, com sua característica falta de educação, ou das propagandas comerciais de lojas e farmácias que disputam clientes na base do escândalo. Sequer era a playlist, repetida diariamente, de uma rádio instalada no poste perpendicular ao horizonte da sala ou o triste espetáculo, a cada semana mais frequente, de um vizinho bêbado trancado do lado de fora de sua casa.

            Era um burburinho estranho, uma azáfama de vozes desencontradas e de pés acelerados. De início, não foi possível distinguir palavra do que diziam, apesar dos muitos decibéis. Uma voz se sobrepunha à outra e outra em ritmos e ditos incongruentes. Construíam um coro à semelhança de uma massa sonora opressiva, monstruosa, que assustava por sua ininteligibilidade.

            Ao poucos, uma ou outra palavra: “pega!”, “quebra!”. Uma frase: “mata esse filho da puta!”

            Era o dantesco de um linchamento.

            Na esquina, um homem acuado, reduzido à fragilidade mais quebradiça, cercado por uma multidão enfurecida e que, a cada segundo, engrossava mais. Da distância onde eu estava, vencido pela impotência e pelo 190 que insistia em não funcionar, vi socos e pontapés, mesmo quando a vítima de tais agressões já se encontrava no chão. Vi empurrões, ouvi ameaças.

            Vi jovens sorrindo, correndo em direção à turba ensandecida como se identificassem, naquela cena, alguma espécie de festa. Como se pudesse existir, no momento em que alguém se faz verdadeiramente covarde, alguma alegria. Porque a covardia não é o medo, mas a face assimétrica que se revela no exercício da brutalidade.

            Todos queriam o seu quinhão dejustiçamento. E, uma vez manchados os punhos e as camisas com disputadas gotas de sangue alheio, não duvido que as tivessem como troféus, daqueles que dispomos orgulhosos aos olhares de amigos e de parentes.

            Pelo que ouvi, e que fique registrada a sempre possibilidade de uma margem de engano, seja meu, de oitiva, ou de quem acusou, o rapaz havia roubado um celular. Não sei em que condições o fez, e se de fato o fez. Apenas que o sentimento de revolta, por mais justificado que ele o seja, não pode ser plataforma para a barbárie.

            Porque, como já escreveu Clarice Lispector acerca da morte de Mineirinho, “na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado”.

            A violência não se conforma como um círculo que, uma vez retornando ao ponto de início, cessa o seu movimento. A violência organiza-se em espiral. Em torno de um eixo, ela gira e se expande. Infinitamente.

            A violência é incapaz de gerar o seu próprio fim. Alimenta-se de si mesma, em moto-perpétuo. Somente uma força externa, que dela se distinga como o seu exato oposto, é capaz de interromper o seu avanço.

            Talvez o houvessem matado, não fosse a polícia chegar cerca de três ou cinco minutos após o início da agressão.

            Diante da possibilidade, não consigo não pensar na indignação legítima com que nós sofremos a morte de alguém assassinado por causa de um celular. E não consigo não inverter a lógica e não pensar que também ele, o assaltante sendo linchado naquele instante, está igualmente sendo morto por causa de um celular.

            Não. Não é que eu esteja contra a suposta pessoa de bem que supostamente suou o seu trabalho supostamente digno para obter aquele celular; nem que eu esteja agitando a bandeira da impunidade, que viva em conluio com criminosos ou qualquer outra besteira do tipo – dessas que apenas seduzem e convencem a quem faz, da ignorância, um deliberado modo de vida.

            Mesmo em face da fúria mais compreensível, há qualquer coisa de muito, muito frágil, que não podemos arriscar perder. E esta coisa é uma linha tênue, da espessura às vezes de um fio de cabelo, que demarca a fronteira entre a barbárie e um qualquer estado outro que nomeie a sua diferença, o seu oposto.

            Ela, esta pequena linha fronteiriça, é nossa garantia, nossa segurança.

            Infelizmente, ela não é capaz de proteger nossa vida e corpo. Ou, pelo menos, não de modo pleno.

            Mas, no mínimo, e o mínimo é fundamental, ela nos protege de sermos nós o móbil do giro da barbárie.

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem: Reprodução Internet

07/07/2022 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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