DA NECESSIDADE DO ESPANTO
Ao contrário do que reza a cartilha do bom senso brasileiro, que preza por uma agenda de invisibilização dos conflitos, penso que, sim, religião se discute – futebol e política também, mas estes são tópicos para outros textos.
É preciso, porém, esclarecer um ponto: o posicionamento acima não é senha para que se conteste a fé de quem quer que seja. Não se trata de desqualificar ou negar os credos particulares, os quais podemos ou não professar – estes são invioláveis. Trata-se, isto sim, de entender que religião e fé são realidades distintas. Enquanto a primeira circunscreve uma instituição que, como qualquer outra, é produto concreto das interações humanas com o tempo e o espaço, sendo, portanto, uma peça histórica atravessada por tensões, a segunda diz de uma modalização íntima da experiência do mundo, da vida – algo que traça uma conexão entre o sujeito e um suposto sentido maior, que o englobe. Neste sentido, a fé não intenta ser universal: ela é uma realidade do e no indivíduo. A religião, por sua vez, pode assumir e não raro assume uma disposição no jogo dos poderes que formata a ordem social, podendo funcionar como um dispositivo de controle e de subalternização dos corpos, de justificação da violência.
A despeito do que fiz parecer no parágrafo acima, a religião não é intrinsecamente má. Não se trata aqui de recorrer à pobreza de um argumento estereotipado, que toma pela rama as complexidades todas inerentes à instituição. Apenas pretendo sinalizar que os discursos religiosos – independentemente de quais sejam – não podem ou não devem ser subscritos de modo acrítico, como se enunciadores de uma verdade absoluta. São formas articuladas pelas pressões históricas e responsivas à dinâmica do poder. Portanto, prenhes de tensões sociais e de posições políticas.
Preocupa-me o fato de que a fé seja, com certa recorrência, capturada pelo discurso religioso de modo a naturalizar um determinado estado de coisas, que prima pela opressão, pela subalternização e pela violência. A pretexto de salvaguardar o dogma, atitude muitas vezes aderente à conservação de uma normatividade excludente, quantos e quantas de nós temos a vida constantemente violada?
Os exemplos históricos são muitos e diversos. Penso, por exemplo, nas fogueiras em que morreram mulheres acusadas de feitiçaria. Penso, por exemplo, nos missionários colonizadores na América e na África. Penso, por exemplo, nos sermões de Vieira aos escravizados negros, instigando-os a resignarem-se diante da escravidão. Penso, por exemplo, no silêncio e no expurgo impostos aos teólogos da libertação. Penso, por exemplo, no modo como as sexualidades dissidentes são perseguidas e violentadas pelo fundamentalismo cristão movimentado por certas vertentes do segmento evangélico.
Entre todos eles, percebe-se um traço de união: o alinhamento obediente à norma social, à disposição das esferas de poder. Em todos eles, a naturalização da violência como forma de impor ou conservar uma estrutura sócio/econômica/cultural.
Nada que aponte para o divino, para o sagrado. Apenas a tristeza do que é demasiadamente humano.
Do ponto de vista da história, portanto, não causa espanto o fato de Marcos Granconato, pastor da Igreja Batista Redenção de São Paulo, ter defendido, em uma publicação no seu facebook, que “mendigos têm o dever bíblico de passar fome”. É tão somente mais um absurdo que se soma à longa série de argumentos religiosos movimentados para naturalizar a opressão e conservar desigualdades.
No entanto, do ponto de vista daquilo que é o resquício, em mim, de uma idealização qualquer da gente, de um desejo mais do que certeza de uma evolução ética de nossa espécie, daquilo o que, em mim, é a conexão íntima com a irmandade do outro, não importando o quão outro o outro seja, é impossível não haver espanto diante de algo tão cruel e, sobretudo, contrário ao exemplo do Cristo.
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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: O Grito – Edvard Munch – Reprodução da Internet