522 ANOS, OU, ATÉ QUANDO? - Meu nome é Johni

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522 ANOS, OU, ATÉ QUANDO?

522 ANOS, OU, ATÉ QUANDO?

22 de abril de 2022.

            O hábito matutino de retirar o dia de ontem da folhinha me lembrou, logo às sete e com letras destacadas em negrito, a efeméride do “descobrimento do Brasil”.

            Se não me falha a memória, foi também assim que eu aprendi, na época do colégio, a identificar o nosso marco inaugural: descobrimento.

            Ressalva feita à inconsistência do método, assumidamente pouco científico, a julgar pela quantidade de resultados no google para o descritor “descobrimento do Brasil” – aproximadamente 512.000 resultados –, é ainda assim que, em geral, reconhecemos o acontecimento de os portugueses terem aportado, pela primeira vez, na região do Monte Pascoal.

            Para a maioria de nós, tal expressão passa despercebida, naturalizada. E é um problema que seja assim. A inobservância da dimensão política da linguagem, que formata e enraíza imagens de mundo a partir das quais significamos nossos modos de estar com, faz o jogo dos poderes instituídos. Isto é: organiza formas inconscientes de replicação do status quo. A linguagem não é apenas veículo ou instrumento do poder; antes, ela é a materialidade na qual o poder é.

            A expressão “descobrimento do Brasil” é problemática. Ela, ao mesmo tempo, engendra e espelha as diversas assimetrias sociais que nos organizam como nação.

            De início, ela esconde, protege e universaliza um determinado ponto de vista a partir do qual a história é contada. No dicionário online Priberam, a primeira entrada para o verbo “descobrir” significa: “achar o ignorado, o desconhecido ou o oculto”. O grande problema é que “ignorado”, “desconhecido” ou “oculto” não são condições absolutas, isto é, indistintamente válidas para todos os agentes humanos, mas relativas – dizem daquilo que não é familiar para algo ou para alguém específicos. Desta forma, há um prisma particular – o suposto desconhecimento, pelos portugueses/europeus, do território em questão ­ – elevado ao patamar de perspectiva universal – o que só pode ser feito mediante o apagamento do ângulo a partir do qual os povos indígenas experimentaram a cena: o de serem invadidos, violados.

            Em seguida, é necessário compreender que o verbo “descobrir” implica um jogo dicotômico de posições: o corpo ativo, responsável pela ação de descobrir, e um corpo passivo, o qual sofre a ação de ser descoberto. Neste sentido, o par português/Europa é localizado como corpo ativo enquanto, noutro plano, o par povos originários/Brasil como um corpo passivo. Tal rede de significados funciona de modo a subsumir todo o campo de agência no polo colonizador enquanto relega, aos povos indígenas, um vazio apenas ocupado pelo gesto de aceitar o outro europeu. Com efeito, este é o tom em que se modalizam os primeiros relatos europeus da colonização, bem como todo o imaginário indianista construído pelo nosso romantismo. O efeito político desta engrenagem é o silenciamento das tensões que posicionam os povos indígenas como agentes de uma resistência histórica, que se organiza desde o primeiro momento e segue até o presente. Trata-se de invisibilizar a recusa da violência sofrida para que ela não seja percebida como violência, mas aceita como “gesto civilizador”.

            Em consequência, é preciso também entender que o verbo “descobrir” acarreta uma certa neutralidade, por assim dizer. Não uma neutralidade de pontos de vista, como já discutido, mas de conflitos. A expressão “descobrimento do Brasil” ajuda a coser um imaginário a respeito deste país em que a violência não figura, como se nossa história não fosse pontilhada por tensões, conflitos, violações, genocídios e revoltas. Como se fôssemos desprovidos de problemas ou plenos de harmonia. Ou seja: é parte fundamental de nosso mito fundador, que diz insistentemente de um país que não existe e que nunca existiu.

            Se a linguagem é, de fato, a materialidade na qual o poder é, a disputa da produção discursiva e os tensionamentos em torno de uma revisão de nossos modos de significar e dizer constituem ações políticas importantes, talvez as mais potentes. Neste caso, é fundamental considerar alternativas à expressão “descobrimento do Brasil”, formas estas comprometidas com o questionamento e a reversão da estrutura de violência que nos funda como nação – afinal, é preciso visibilizá-la, trazê-la a primeiro plano, para que se forme uma ampla consciência a seu respeito, base sem a qual a sua quebra permanecerá sendo adiada enquanto os corpos historicamente violados continuarão sendo desumanizados e mortos.

            22 de abril é uma data sem dúvida importante para o Brasil. No entanto, menos como memória festiva ou celebratória do que como gatilho para discussão de nossa história e problematização política do que somos, do que temos sido e do que precisamos vir a ser.

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Imagem:  mapa do Brasil – reprodução da internet

22/04/2022 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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