O CASO MONARK – ALGUMAS NOTAS - Meu nome é Johni

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O CASO MONARK – ALGUMAS NOTAS

O CASO MONARK – ALGUMAS NOTAS

Imagino que seja conhecido de todos os leitores deste blog o caso do youtuber Bruno Aiub, mais conhecido como Monark. No episódio 545 do FlowPodcast, em que ele e Igor Coelho, hosts do programa, recebiam Tábata Amaral e Kim Kataguiri, deputados federais respectivamente por PSB e Podemos, Monark, ao argumentar em favor de uma liberdade irrestrita de expressão, defendeu a legitimidade de um partido nazista no Brasil. Os demais integrantes da mesa tiveram reações distintas: Igor Coelho manteve-se calado, como se reservasse alguma prudência em relação ao assunto, Tábata Amaral discordou veementemente, contra-argumentando em função do perigo que jaz sob o discurso nazista, e Kim Kataguiri, depois de ser instado pela deputada, afirmou discordar da criminalização do nazismo estabelecida pela lei alemã, no que se aproximou do posicionamento de Monark. O caso teve repercussão imediata nas redes e também fora delas, com amplo repúdio ao discurso veiculado pelo youtuber, gerando pressão sobre os patrocinadores dos EstúdiosFlow, que cancelaram os contratos – a FERJ, por exemplo, que havia cedido os direitos de transmissão do campeonato carioca de futebol ao Flow Sport Club, braço esportivo do estúdio apresentado por Igor Coelho e Gustavo Sanches, mais conhecido por Davy Jones, retirou prontamente a cessão. A pressão escalonou de tal maneira que, no dia seguinte ao programa, como uma tentativa de salvar a empresa e os seus produtos, foi anunciado o desligamento de Monark não apenas como um dos apresentadores do FlowPodcast, que havia sido criado por ele junto ao seu parceiro Igor Coelho, como também da sociedade – o seu companheiro de mesa comunicou ao público e ao mercado a compra integral das ações de Monark, deixando de existir qualquer vinculação entre este e os estúdiosFlow.

            Quero dizer algumas coisas sobre este caso:

  1. No último texto que escrevi para este blog, disse gostar da dinâmica que o Flowconferia aos seus episódios, formatando-os mais como uma conversa, às vezes caótica, do que como uma entrevista previamente roteirizada. De fato, considero este um ponto extremamente positivo, porque ajuda a quebrar uma espécie de aura mítica que se aloja em torno de alguns nomes, restituindo a eles uma dimensão mais “carne e osso”, por assim dizer – uma feição mais viva, contraditória, menos obediente aos regimes de aparência que algumas posições sociais reivindicam. No entanto, destaquei algo que me preocupava – e continua me preocupando – junto ao Flow, principalmente à figura do Monark – o Igor, verdade seja dita, apesar de ideologicamente próximo de seu ex-companheiro de mesa, sempre se mostrou muito mais aberto ao convidado, disposto a ouvir, ao invés de marcar discordâncias desprovidas de qualquer embasamento no real. Àquela altura, fiz a crítica do “culto à ignorância”, do qual o Monark era um produto direto e, na mesma medida, um artífice sem igual. A questão retorna aqui. Qualificar o Monark como um “burro” ou “ignorante”, como verifiquei muitos articulistas e comentadores de youtubefazerem, não corresponde, em minha leitura, exatamente à sua figura. Parece-me um equívoco considerá-lo assim, muito embora ele seja alguém desprovido de um conhecimento de mundo mais denso, que possibilite uma modulação minimamente embasada e coerente de seu discurso com a história, as tensões sociais e/ou tópicos de ciência e filosofia. É alguém não apenas sem leitura, nos sentidos mais restrito e mais amplo que o termo pode assumir, como também pouco aberto a uma dimensão mais coletiva de existência; alguémque se fecha em torno de si mesmo, operando uma atomização do mundo em prol de um individualismo fetichizado. Ainda assim, o Monark, ao criar para si uma imagem de “questionador”, de “revoltado”, de“defensor da liberdade irrestrita”, soube, como talvez nenhum outro empresário, capturar o desejo de uma juventude em muitos níveis demasiadamente imatura, que mobiliza um perfil provocadorapenas na aparência, pois não atua como tensionamento de um mundo problemático, mas como modo primário de afirmação de si. Aquela coisa de adolescente querendo se diferenciar dos pais.Monark capitalizou em cima da ignorância sistêmica, vendendo uma legitimação do vazio epistemológico como campo possível de um discurso legitimado – os achismos mais absurdos, oriundos de um vácuo de referências, foram alçados à mesma altura de discursos seriamente construídos, embasados, verificados por pares. E o que pode ser mais sedutor para um jovem ávido por claques (e por cliques), dispositivos por intermédio dos quais afirma sua frágil existência individual no mundo, se não a ideia de uma autossuficiência imediata e espontânea? Designá-lo ignorante, portanto, diz pouco, muito pouco, do universo em que ele circula e das forças (tristes) que ele mobiliza. Digamos que, mais do que um ignorante, ele é um empresário do culto à ignorância.
  2. Apesar de uma obviedade, é necessário afirmar: o culto à ignorância não é, em nenhuma medida, inofensivo. Não obstante a imagem de “revoltados contra o sistema” que seus partidários procuram fomentar, o culto à ignorância faz justamente o jogo dos poderes estabelecidos, atuando apenas como um agente neutralizador das tensões sociais. Ou seja, como uma contra-força que procura conter o potencial disruptivo que emerge desde os campos periféricos (a metáfora é geográfica, mas não se refere apenas à disposição territorial da urbe; aplica-se igualmente à produção dos saberes). Assim é que, ao longo da história do FlowPodcast, o Monark deu vazão a diversos posicionamentos que, na medida em que procuravam deslegitimar agendas políticas de grupos minoritários, atuavam como padrão de reforço da doxanacional, articulando-se, ainda que inconscientemente, com a branquitude, o patriarcado, a heteronormatividade, o eurocentrismo, a uma perspectiva de mundo vista a partir da universalização da classe média paulistana e, claro, amalgamada ao capital. A dissidência, é importante deixar isto muito bem escrito, é um processo que, se nasce desde a existência singular de um corpo, deve ser ladeada por uma construção intelectual séria, sistemática, ao mesmo tempo vertical e horizontal. Nenhuma dissidência se origina de um insight autogerado e isolado, uma vez que nossos modos de existir mais naturalizados encontram-se sob a captura dos poderes que ordenam o discurso, atuando apenas como uma espécie de rebeldias permitidas, as quais mais confirmam a ordem instituída do que a afrontam. 
  3. Nesse cenário, como pode ser compreendida a defesa peremptória da liberdade irrestrita de expressão? Primeiro, é fundamental compreender que a ideia de liberdade, outrora revolucionária, já de há muito foi capturada pelo capital, tendo sido neutralizada em seu potencial disruptivo – ao menos, no que se refere a uma ideia ancorada na soberania do indivíduo. A liberdade é um fetiche, uma mercadoria no e-commerce de bens simbólicos do mundo contemporâneo. Isto não quer dizer, evidentemente, que eu esteja me colocando ou convocando os leitores a ocuparem posições de subserviência. Longe disso. Apenas afirmo que nem todo uso da palavra implica, de fato, a ausência de servidão ou aprisionamento. A palavra “liberdade” faz o jogo da doxa capitalista, colocando à disposição dos consumidores um produto esvaziado de concretude, ao qual nós nos prendemos em um movimento escalonado de consumo – se a liberdade se esgota no ato mesmo de consumi-la, como de resto todo produto passível de ser comprado em um shopping center ou em uma marketplace,é preciso consumi-la em um ritmo cada vez mais frenético e em doses cada vez mais aumentadas. No mercado contemporâneo de bens simbólicos conexo ao status quo nacional, a defesa de uma “liberdade irrestrita de expressão” cumpre exatamente este papel, conectando-se a uma população que se crê cerceada em seu hábito de dar vazão a discursos discriminatórios, violadores da existência do outro. Não foram raros os momentos em que o Monark, seja através do FlowPodcastou de seu Twitter, argumentou que os movimentos minoritários, açambarcados todos a partir de uma ideia vaga e estereotipada de militância, tolhiam a liberdade de expressão das pessoas, objetivando uma norma do que e do como dizer.Trata-se da paranoia inerente aos grupos sociais que detinham para si o poder exclusivo de ordenar o discurso e que, no entanto, se veem agora confrontados pela disputa da palavra – uma guerra em que, pela reorganização do discurso, objetiva-se modos mais democráticos de dizer. Consequentemente, é necessário compreender que a liberdade, se pensada como um espaço do vale-tudo, implica, paradoxalmente, a própria supressão da liberdade – como argumenta o paradoxo da tolerância de Karl Popper, tão comentado ao longo desta semana. A liberdade precisa antes ser pensada como um espaço de mediação entre múltiplas existências individuais e coletivas singulares, o que significa dizer que os seus limites precisam ser ajustados de modo contínuo, mediante um movimento cada vez mais intenso de alargamento democrático. Pensar a liberdade como a supressão absoluta de qualquer restrição ou de qualquer consequência é um gesto não apenas infantil, mas terrivelmente comprometido com a continuidade histórica dos processos de violação da existência de certos grupos. É neste sentido, afinal, que operam o questionamento “ter uma opinião racista é crime?” publicado pelo próprio Monark em seu perfil do Twitter em 26 de outubro de 2021, ou, a sua defesa da legitimação de um partido nazista no Brasil, ocorrida esta semana. A liberdade de expressão é, sim, uma conquista civilizacional, no sentido em que ela possibilita uma arena de debates em que múltiplos atores se apresentam dotados de voz. No entanto, a imputação de limites a ela é, igualmente, uma conquista civilizacional, pois, nós já o deveríamos saber, a palavra pode ser, e tem sido, um veículo de morte – processos históricos de genocídio são primeiro instaurados pela palavra, via disseminação de discursos de ódio. Assim, se, por um lado, o livre trânsito das ideias deve ser defendido, por outro, nem todas as ideias devem ser livres para circular. O critério é muito simples e nada tem de autoritário ou arbitrário: desde quando uma ideia, em sua quintessência, implicar o extermínio, a submissão ou inferiorização do outro, ela precisa ser suprimida enquanto possibilidade de constituir uma política legitimada.
  4. Em decorrência do critério postulado no parágrafo anterior, fica absolutamente fácil compreender por qual razão o comunismo continua como uma perspectiva política viável enquanto o nazismo não o é, nem pode vir a ser. Escrevo este tópico porque a equiparação entre comunistas e nazistas, além de ter sido mobilizada pelo próprio Monark, tem sido constantemente veiculada por ideólogos e partidários da extrema-direita nacional em uma tentativa de angariar apoio para criminalizar o pensamento de esquerda – não nos esqueçamos que o atual presidente, ao ser eleito, prometeu varrer os vermelhos do país, ou que circulam propostas para enquadrar movimentos sociais como grupos terroristas. A redução de comunistas e nazistas a um mesmo é absurda e apenas comprova a mais completa ausência de referências históricas e teóricas acerca das duas ideologias – ou um irresponsável mau-caratismo. Evidentemente, as formas de organização política que se identificaram como comunistas degeneraram em ditaduras terríveis, que não devem ser toleradas – e a esquerda contemporânea tem o dever de se desgarrar e de fazer a crítica dos regimes totalitários que vestem ou vestiram vermelho. No entanto, diferentemente do que se passa com o nazismo, a teoria comunista não reivindica a eliminação radical de quem quer que seja: em nenhum texto seminal do comunismo se encontra uma lógica de racialização e extermínio de corpos dissidentes. O nazismo não pode existir sem a racialização, perseguição, submissão e eliminação de populações inteiras – além da comunidade judaica, os nazistas também perseguiam negros, pessoas com necessidades especiais, ciganos, LGBTQIA+, comunistas, etc. É um projeto, portanto, de supremacismo. A violência é inerente ao nazismo. O comunismo, por sua vez, embora tenha praticado horrores inquestionáveis, não é intrinsecamente conectado à produção do terror, muito pelo contrário: trata-se de uma utopia de emancipação do ser humano em relação às condicionantes opressivas pelas quais é historicamente subjugado. O terror vermelho não se aloja na ideia comunista, mas em orientações e geografias particulares: stalinismo, maoísmo, castrismo, PolPot, Coreia do Norte, etc. O pensamento comunista sobrevive bem (e eu diria: melhor) quando apartado destas referências. Já o nazismo não se sustenta sem o culto a Hitler, não apenas por ele ser a imagem histórica do movimento, mas, principalmente, por ele ser a perfeita junção entre o ideário e a prática nazistas. Dito de outro modo: o comunismo não implica automaticamente a implementação dos gulags, pois, apesar de estes serem uma trágica realidade histórica, não são sustentados pela teoria que orienta a base do pensamento comunista nem se configuram como elementos necessários para a concretização da utopia. Noutro plano, o nazismo é, em sua natureza mais íntimae indisfarçável, uma política de extermínio – não há nazismo sem discursos de ódio, sem a “noite dos cristais” ou sem Auschwitz.
  5. Novamente no Twitter, em postagem datada de ontem, 10 de fevereiro de 2022, Monark afirmou estar sendo vítima de um linchamento desumano. Há, decerto, muitos exageros ocorrendo: designá-lo como um nazista excede em muito a realidade. Em nenhum momento ele fez uma defesa do pensamento nazista ou da figura de Hitler. E é extremamente perigoso incorrer em um aumento tão drástico do ocorrido. No entanto, isso não significa que a sua fala possa simplesmente ser vista como um “erro”, ainda mais causado pelo abuso do álcool. Foi algo muito mais grave do que isso e que precisa ter consequências de igual proporção, desde que justas e na medida da lei. De antemão, a sua exclusão dos Estúdios Flow e, principalmente, do microfone do FlowPodcast é, em si, um ganho para o debate públicotravado na internet, sobretudo no youtube. Talvez, por intermédio deste evento, certos youtubers, acompanhados de seus públicos,entendam a necessidade urgente de uma melhor qualificação, de um embasamento mais sólido, de uma maior adesão ao sentido de responsabilidade que todos devemos ter quando decidimos abrir a boca.

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A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Imagem:  reprodução/youtube

11/02/2022 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

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