TOCAR O OUTRO E POR ELE SER TOCADO - Meu nome é Johni

Meu nome é Johni
MENU
TOCAR O OUTRO E POR ELE SER TOCADO

TOCAR O OUTRO E POR ELE SER TOCADO

Uma notícia que li no dia 19 de novembro deste ano, um dia antes, portanto, da data em que está simbolizada a luta antirracista sob o nome de “Dia da Consciência Negra”, ainda me perturba, mesmo uma semana inteira depois. Trata-se do fato de uma turma de ensino médio de um importante colégio particular de Salvador ter-se recusado a trabalhar com o livro de contos Olhos d’água, de Conceição Evaristo, sob o pretexto de não serem obrigados a “lidar com uma dor que não é nossa”. O caso, por si só absurdo, foi ainda mais agravado pela conduta da escola, que acolheu reclamação dos pais em relação ao trabalho com a referida obra, afastando a professora da sala de aula e proibindo (!) menções ao livro em suas dependências.

            Fosse outro o contexto em que se deu o afastamento e a proibição, eu utilizaria desse espaço para falar sobre a fragilidade do sistema privado de ensino, o qual funciona muito mais a partir de uma lógica empresarial do que propriamente educacional. Isto é, o compromisso com a educação, com a formação ética, crítica, e consciente dos estudantes pesa menos do que os volteios do mercado e as pressões das mães e dos pais que injetam o valor das mensalidades na instituição. Não custa muito esforço alcançar o perigo que subjaz a esse tipo de relação – aliás, quem já trabalhou na coordenação pedagógica ou no exercício docente de alguma escola particular dificilmente escapou de vivenciar algum constrangimento oriundo do descompasso entre a práxis educacional e as opiniões emitidas por pais e responsáveis. Às vezes, parece mesmo verdadeira aquela máxima um tanto quanto estereotipada das relações comerciais: “o cliente tem sempre razão”.

            No entanto, admito: a frase “não vamos lidar com uma dor que não é nossa” capturou por completo o meu espanto. Esse estado de alheamento em relação às experiências de vida que não foram por nós vividas é o retrato mais absurdo e terrível daquilo o que nós temos nos tornado – ou daquilo o que nós sempre temos sido. Trata-se de uma atomização radical do ser humano, o qual está voltado exclusivamente para o si-mesmo. Nessa perspectiva, o espaço de trânsito em que circula a diferença entre os seres se fragiliza e dilui, deixa de existir. Restam apenas o individualismo exacerbado ou, a sua versão coletivizada, as bolhas sociais do mais do mesmo, que vêm a ser a repetição infinita de si no corpo do outro. Resulta deste cenário que as dores e alegrias dos que não estão inscritos nos limites pouco largos que delimitam a mesmidade do sujeito afetam-no muito pouco. Ou nada. Se a potência de um corpo é definida, segundo o filósofo Baruch Espinosa, pela capacidade de afetar o mundo e de por ele ser afetado, o que pode ser de uma sociedade em que os jovens – que supostamente seriam os corpos em abertura radical para o encontro com o mundo – se recusam à possibilidade de serem afetados pela existência do outro?

Em todo caso, a frase “não vamos lidar com uma dor que não é nossa” continua repercutindo violentamente em mim. E acho, de modo muito sincero, que deveria repercutir violentamente em todos nós. Afinal, é justamente esta a possibilidade em perigo – o nós. Não me refiro a um nós idealizado, homogeneizado, que reverbera a falácia do “todos somos iguais”. Refiro-me ao nós como o espaço do entre a primeira pessoa do singular, eu, a segunda, tu/você, e a terceira, ela/ele. Isto é, refiro-me ao nós como um lugar de encontro e mediação de nossas vidas e singularidades. É isto o que está sob risco: o nós tem sido relegado ao campo do impossível, uma vez que há a recusa de ser afetado pelo outro.

Este cenário que estou descrevendo pode parecer relativamente abstrato, mas não é: garanto, tratam-se de uma considerações em torno de uma questão ética, às voltas com um problema político. Como se pode pensar em democracia em um solo social em que medra uma política de negação da possibilidade da diferença nos atravessar? Insistiremos na redução da palavra “democracia” a um mero sistema eleitoral? Até quando fecharemos os olhos para o fato de que a democracia só será, de fato, potente quando inscrita para além dos processos eleitorais, isto é, quando ela estiver inscrita na dinâmica da vida, em nossas micropolíticas cotidianas. E para isto, é fundamental a construção do nós, no sentido acima referido.

            A escola se defende, afirmando que o problema não esteve relacionado às existências impressas no livro de contos, mas em relação ao seu teor de violência e à linguagem inapropriada para a idade – tais teriam sido as razões pelas quais pais e mães teriam buscado a instituição no sentido de que fosse abortado o trabalho com a literatura de Conceição Evaristo, que é um dos nomes mais potentes no cenário da produção artística nacional. Caso isso seja mesmo verdade, cabe perguntar se as mesmas restrições temáticas e de linguagem se estendem a outras vivências dos jovens, como, por exemplo, os canais de youtubeque eles assistem; os perfis de instagram e twitter que seguem ou mesmo os jogos de videogame que jogam – isso para não falar na própria intimidade das casas em que vivem, ao que parecem, ciosas de uma imagem edulcora e impoluta. A mim, pelo menos, apaixonado que sou por Machado de Assis, fantástico escritor brasileiro que tantas vezes desvelou o descompasso entre o discurso moral(izante) e a tessitura íntima das relações sociais no Brasil, tal explicação soa apenas como o verniz hipócrita que procura contornar e manter velado o racismo subjacente ao ato da recusa em tocar as vidas dos corpos racializados – e de por eles ser tocado.

Curta e compartilhe as nossas postagens.

            A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!

Foto:  Laura Santos

29/11/2021 | Autor: Comunidade Johni Raoni 

O que você achou? Deixe seu Comentário