
LAROYÊ EXU
Em meio a um cenário urbano, representativo de alguma grande capital brasileira, as primeiras tomadas do documentário Dança das cabaças – Exu no Brasil, dirigido por Kiko Dinucci (2006), indagam: Quem é Exu?
Apesar de inofensiva, esta pergunta provocou reações estimuladas pelo medo, pelo desconhecimento e pela intolerância nas pessoas entrevistadas. Seguem alguns poucos exemplos.
Uma senhora disse apenas conhecer Jesus; Ele, sim, “maravilhoso”.
Outra, tão logo feita a pergunta, afastou-se, fingindo pressa.
Uma terceira, dizendo-se evangélica, afirmou que não poderia se tratar de “coisa boa”.
Alguns rapazes, por fim, foram mais diretos: “é o mal”, “é o Coisa Ruim”, “é o Demônio”.
Os depoimentos obtidos, muito embora indiciem emergências de conflitos contemporâneos, não correspondem a invenções depreciativas recentes. Sua genealogia remonta a antigos discursos, produzidos já pelos primeiros missionários cristãos no continente africano, transladados para o Brasil em função de justificarem o sistema escravocrata. Aqui cristalizadas, tais falas são agora revigoradas e potencializadas pela crescente sanha xenofóbica de determinados segmentos evangélicos neopentecostais, pouco afeitos à presença do que não é o mesmo.
Com efeito, os enunciados registrados por Dinucci recuperam, por sob a tessitura da recusa que pretendem, a feição colonialista e o propósito genocida – se não propriamente dos corpos físicos, ao menos de sua episteme – que intimamente motivavam os missionários. Afinal, os imperativos que orientam para a conversão, típicos das religiões salvacionistas, constituem práticas símiles ao extermínio do outro, ao expurgo de toda diferença.
O forte e violento repúdio ao nome de Exu denota, por metonímia, uma aversão generalizada às expressões religiosas afro-brasileiras, que vêm a ser índices de um continuum civilizacional África-Brasil – portadoras, portanto, de um determinado ethos africano espelhado à margem oeste do Atlântico Sul.
Exu é princípio dinâmico de todo o sistema mitológico e ritualístico nagô: sem Ele, nada é possível, nada se faz, nada existe. Por consequência, detratá-Lo e silenciá-Lo, afastando-O de um campo possível de identificação positiva, é, por via indireta, operar contrariamente à existência daquele ethos africano-brasileiro.
Desta forma, as respostas registradas nos momentos iniciais daquele documentário apontam para um problema maior do que a intolerância religiosa em si: evidenciam reais estratagemas – naqueles entrevistados, talvez, inconscientes – de um gradual apagamento das tradições religiosas afro-brasileiras – o que anda de braços dados à violação dos corpos negros promovida pelo racismo.
Por isso, comovem-me tanto, a mim que sou de candomblé, as declarações públicas de Paulinho, jogador do Bayer Leverkusen, time da Alemanha, e da seleção olímpica brasileira de futebol. Homem negro e de Axé, Paulinho pauta posicionamentos fundamentais ao colocar a sua fé em evidência, não como um gesto de proselitismo religioso (o candomblé não opera por meio do assédio à conversão), mas como uma forma de estabelecer a sua existência e comprometer-se com o combate à discriminação religiosa. Ao mobilizar o nome do Orixá sob uma perspectiva positiva (“nunca foi sorte, sempre foi Exu”, ele escreveu em uma postagem nas redes sociais), ou, ao comemorar um gol marcado na quinta-feira, dia de Oxóssi, com o gesto de atirar uma flecha, que vem a ser um símbolo de Odé, Orixá caçador, Paulinho abre um horizonte de representação para milhares de garotos e garotas que, desde suas comunidades-terreiro, se veem combatidos e violentados. Paulinho sabe que um campo de futebol é um palco político e, por isso, reivindica para si e para os seus irmãos-de-Axé um lugar na cena.
Laroyê Exu
Oke Aro Oxossi
Axé Paulinho.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Foto: Helemozão