8 DE JANEIRO, UM DIA PARA NUNCA ESQUECER
Eu sei que muito já se disse acerca do 8 de janeiro, quando vimos acontecer uma tentativa de golpe de Estado levada a termo pela militância da extrema-direita nacional sob a cumplicidade dos órgãos repressores do Distrito Federal, a polícia militar e o exército. Lentamente gestado ao longo dos últimos quatro anos – seja pelas bravatas quase diárias do antigo presidente (sic) ou pelo silêncio carregado de não-ditos inconsequentes com o qual se vestiu após outubro –, o ovo da serpente finalmente rachou e ninguém mais tem o direito – se é que algum dia teve – de desconsiderar o risco que o bolsonarismo representa para o nosso país, para a nossa democracia e a nossa liberdade; para a nossa possibilidade de futuro.
Quando escrevo isto, tomo sempre o cuidado de situar que aquilo o que está em jogo não é apenas uma disputa entre visões econômicas ou de organização do Estado, se à esquerda progressista ou à direita (neo)liberal. O que verdadeiramente se coloca é a emergência esfomeada do fascismo brasileiro, que ronda sempre à espreita. Ou alguém ainda consegue a desfaçatez de afirmar que as cenas vistas no último dia 8 pleiteavam democracia e liberdade, ou que jogavam dentro das quatro linhas da Constituição?
É a pura besta-fera do ódio a força-motriz por trás dos atos golpistas de 8 de janeiro. Mas, ódio a quê? Acho que quatro momentos relativos à posse do novo governo, em função do seu alto contraste junto às políticas assumidas pelo antigo, ajudam a caracterizar o objeto do ódio: a primeira delas, a entrega da faixa presidencial a Luís Inácio Lula da Silva, eleito pela terceira vez para governar o Brasil; outra, o discurso proferido por Sílvio Almeida, agora responsável pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, por último, o anúncio de Sônia Guajajara e Anielle Franco como Ministras respectivamente dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial. Uma conexão fina ata estes quatro cortes: a presentificação, no centro da política institucional, daquelas, daqueles e daquelxs não apenas excluídos pelos anos Bolsonaro, como também deslegitimados em suas lutas políticas e modos de existir, além de fisicamente violados, quando não mortos.
Em uma atitude de absoluto desrespeito à escolha popular, que é o alicerce básico da democracia, Jair Messias Bolsonaro fugiu aos Estados Unidos para não passar a faixa presidencial a Lula – gesto que, longe de ser uma simples birra infantil, foi estrategicamente posicionado como aceno à radicalização de sua militância. Com isso, a equipe responsável pelo rito de transição entre governos pôde preencher o vazio deixado pelo ex-governante com a projeção metonímica de um país aberto às suas diferenças. A cena foi bonita e emocionou a quem ainda conserva a capacidade de fazer o coração pulsar. Ao contrário do discurso belicoso de 2019, que prometia varrer o país de tudo o que não fosse o mesmo, a simbologia produzida pela posse de Lula aponta para um país sem centro, isto é, que promete trabalhar pela quebra de um binarismo centro-margens oriundo de nossa matriz colonial patriarcal-escravocrata – em parte, talvez seja isso o que a frase “incluir o pobre no orçamento” significa. Representando o povo brasileiro, entregaram a faixa presidencial a Luís Inácio Lula da Silva o Cacique RaoniMetuktire, o garoto Francisco, o metalúrgico Weslley Rocha, o professor Murilo Jesus, a cozinheira Jucimara dos Santos, o militante anticapacitista Ivan Baron, o artesão Flávio Pereira e a Secretária Nacional da Mulher e Juventude da Unicatadores Aline Sousa. É contra essas pessoas, é contra essa imagem de país, que os acampados em frente aos quartéis tentaram marchar.
O discurso de posse do Ministro Silvio Almeida, que assumiu o cargo antes exercido por Damares Alves, não poderia ser mais efetivo em ativar a presença de quem, ao longo do exercício de sua antecessora, esteve à margem completa das políticas públicas organizadas pelo Ministério. De tão bonito e poderoso, não me furto a citá-lo em seu trecho mais emblemático:
Quero, no entanto, estabelecer aqui um primeiro compromisso. O compromisso deste Ministério com a luta de todos os grupos vítimas de injustiças e opressões, que, não obstante, resistiram e resistirão a todas as tentativas de calar suas vozes. Por isso, permitam-me, como primeiro ato como Ministro, dizer o óbvio, o óbvio que, no entanto, foi negado nos últimos quatro anos:
Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós.
Mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós.
Homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós.
Povos indígenas deste país, vocês existem e são valiosos para nós.
Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós.
Pessoas em situação de rua, vocês existem e são valiosas para nós.
Pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados e filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós.
Com esse compromisso, quero ser Ministro de um país que ponha a vida e a dignidade humana em primeiro lugar.
É contra essas pessoas, é contra essa imagem de país, que os acampados em frente aos quartéis tentaram marchar.
Da mesma forma, é contra um país que legitima os povos indígenas, no governo representados por Sonia Guajajara como Ministra dos Povos Indígenas, e que legitima mulheres pretas, no governo representadas por Anielle Franco como Ministra da Igualdade Racial, além de acionar positivamente a memória de Marielle Franco, que os acampados em frente aos quartéis tentaram marchar.
É preciso dizer que os atos golpistas de 8 de janeiro não atentaram apenas contra a nossa democracia vigente, mas, sobretudo, que visavam impedir a construção de uma nova e mais verdadeira democracia: aquela em que todes, todas e todos terão assegurados seus direitos à dignidade e aos modos singulares de existir. É contra a diferença que irrompe abalando a fantasia de qualquer centro – e os privilégios erguidos para sustentá-la a todo custo – que o ódio se volta. Se antes, por ingenuidade ou cumplicidade, alguém poderia ainda desconsiderar esta verdade, agora já não tem mais como.
Essa causa é de todos nós. Nos ajude, compartilhando e curtindo o nosso conteúdo.
A LUTA CONTINUA. JOHNI VIVE!
Imagem: reprodução internet